Babenco, homem fora de lugar

No cinema

15.07.16

Hector Babenco foi um artista marcado, se não pela contradição, ao menos pela ambiguidade. Disso extraiu sua força e sua originalidade. Meio argentino, meio brasileiro, realizou um cinema com um pé no desejo de expressão pessoal e outro na busca de comunicação com um público amplo.

Em alguns momentos essas duas intenções se harmonizaram: Lúcio Flávio (1977), Pixote (1981) e O beijo da mulher-aranha (1985) dialogaram com uma vasta gama de espectadores e inscreveram-se na história do cinema como obras íntegras, viscerais, dilacerantes. Falavam de chagas sociais e políticas crônicas, profundas, com uma linguagem narrativa ágil, que prestava tributo ao cinema clássico norte-americano e seus gêneros cristalizados, em particular o policial.

Salto para o alto

São filmes de uma atualidade pulsante e representam um momento de equilíbrio artístico que Babenco teve dificuldade de reencontrar dali em diante, menos talvez por ter supostamente “perdido a mão” do que pelas mudanças no contexto de produção de seu trabalho.

Seu passo seguinte foi grande e ambicioso. Na verdade, um salto. Filmar nos Estados Unidos com astros de primeira grandeza (Jack Nicholson e Meryl Streep), adaptando romance de um escritor norte-americano importante (William Kennedy), deve ter parecido a muita gente uma petulância inaceitável. O resultado, Ironweed (1987), é talvez seu melhor filme, mas fracassou na bilheteria num mercado em que a palavra “fracasso” equivale a uma sentença de morte.

Nesse caso, não foi Babenco que “errou” ou que “deu um passo maior que a perna”. O filme é o que tinha que ser: um conto amargo sobre pessoas à margem que contemplam retrospectivamente a tragédia de suas vidas. Ambientado na época da Grande Depressão, é mesmo depressivo, sem concessões. Foi lançado na época das festas natalinas e não era bem isso que os espectadores norte-americanos queriam ver entre uma compra e outra.

O que fazer em seguida? “Run for cover”, teria aconselhado Hitchcock, que sempre se refugiava num projeto seguro, mais convencional, depois de ter dado um passo em falso na carreira.

Mas Babenco fez o contrário: foi rodar na Amazônia (um inferno para qualquer filmagem) uma grande produção internacional baseada em romance de Peter Matthiessen, com roteiro de Jean-Claude Carrière e elenco estelar (Tom Berenger, Daryl Hannah, John Lithgow, Kathy Bates), lidando com temas espinhosos como o genocídio indígena, o fanatismo religioso, o desmatamento, os impasses da civilização ocidental. Em face da temeridade, o título Brincando nos campos do senhor (1991) parecia até uma autoironia.

Outro fracasso comercial, outro filme admirável.

Experiência pessoal

Aí sim, já com a saúde abalada, Babenco resolveu voltar para terreno conhecido, a Argentina, mais precisamente para sua própria juventude em Mar del Plata, sua cidade natal. Mas fez isso à sua maneira, complicada, avessa, a contrapelo. Chamou o escritor Ricardo Piglia, que também passara a juventude em Mar del Plata na mesma época (embora não se conhecessem), para escreverem juntos o roteiro dessa memória compartilhada. Dividiu-a em dois momentos distintos, misturou biografia e fantasia, quebrou a cara de novo.

Esse mergulho na experiência pessoal (que seria retomado e aprofundado em seu último trabalho, Meu amigo hindu) não rendeu o resultado esperado, nem em termos artísticos nem comerciais, e o movimento seguinte de Babenco foi um retorno ao “outro”, à narrativa em terceira pessoa, à radiografia social que produzira petardos como Lúcio Flávio e Pixote. Baseado no livro de seu médico e amigo Dráuzio Varella, fez Carandiru (2003), coleção de pequenas crônicas da vida no presídio, culminando com o ignóbil massacre. Reconquistou, finalmente, o êxito de público, mas com uma narrativa mais convencional e menos arriscada.

O passado (2007), projeto híbrido baseado em romance do argentino Alan Pauls, rodado em Buenos Aires e em São Paulo, tendo um astro mexicano (Gael Garcia Bernal) como protagonista, pode ser visto como uma maneira indireta de abordar uma das questões mais controversas da vida de Babenco, sua relação com as mulheres. A despeito de suas muitas qualidades, foi outro filme que ficou no meio do caminho, “não aconteceu”.

Por fim, Meu amigo hindu (2015) é um doloroso mergulho na experiência da doença e da morte, um pouco à maneira autoirônica de All that jazz (Bob Fosse, 1979). Um testamento, uma despedida, um ajuste de contas consigo mesmo. Uma mensagem na garrafa que agora, depois de sua morte, ganha novo peso e sentido.

Num rápido olhar retrospectivo, talvez o que unifique a obra cinematográfica de Babenco, tão heterogênea, seja a impressão de alguém buscando seu lugar num ambiente hostil ou, no mínimo, inóspito. A trajetória de um judeu errante procurando entender o mundo à sua volta e ser aceito por ele, mas sem baixar a crista ou fazer concessões.

Cabe esperar que os cinemas e as emissoras de televisão programem reprises dessa filmografia desigual, imperfeita e, sobretudo, viva.

, , , ,