História de uma geração corrompida

Literatura

13.06.12

Ian McEwan escrevia Amsterdam quando Tony Blair tornou-se, em 1996, o primeiro-ministro da Inglaterra, encerrando dezessete anos de conservadores no poder, com Margaret Thatcher e John Major. Sob o thatcherismo, fora desmontado o estado de bem-estar social inglês. As reformas modernizaram e dinamizaram a Inglaterra, mas seu legado também era o personagem de Common people, música do Pulp, filho da ex-classe operária vivendo em apartamentos minúsculos e sem nenhuma perspectiva de vida. No poder, os trabalhistas não acenavam com mudanças radicais, mas com algo chamado “Novo Socialismo”, que misturava as antigas bandeiras de esquerda com capitalismo. A integração do país à Europa e o problema da imigração eram temas de longos e apaixonados debates. Resumindo:  não era um clima de otimismo, mas de alívio.

Mistura de thriller político e fábula moral, Amsterdam, que está sendo relançado pela Companhia das Letras, revolve o legado da época entre um grupo de intelectuais, editores, jornalistas e artistas que se tornaram adultos ainda com o pleno emprego e o auge do walfare state, nos anos 60. Quando a diversão acabou, estavam estabelecidos e souberam encontrar o seu lugar – bolsas, patrocínios, bons empregos – mesmo com os conservadores no governo e continuar ditando opiniões e gostos enquanto eram os britânicos mais pobres que sentiam as consequências do desmonte do sindicalismo e das privatizações.

Egressos desse grupo, os personagens principais do romance de McEwan são dois amigos de longa data, o compositor clássico Clive Lanley e o jornalista Vernon Halliday. Eles  se encontram, numa manhã fria de Londres, no velório de Molly Lane, mulher extraordinária de quem foram ambos amantes na juventude, morta após longa decadência mental. Mais tarde, ambos farão um pacto: se um deles sofrer o mesmo mal, o outro se encarregará da eutanásia. A história, então, dá uma guinada.

Vernon, editor de um grande jornal, o fictício The Judge, tem a chance de combater a fraqueza nas vendas se arruinar a carreira do ministro das Relações Exteriores, Julian Garmony, outro ex-amante de Molly, além de político xenófobo e direitista. Mas para isso, tem de ceder à moral vitoriana da  imprensa e da política inglesas quanto às vidas privadas das personalidades públicas. Linley, por sua vez, comete seu próprio pecado moral para não perder o fio da meada de uma composição.

Premiado com o Booker Prize, principal prêmio literário da Inglaterra e um dos mais importantes do mundo, o livro costuma ter fãs e detratores quase na mesma medida. Em 2011, Sam Jordison, crítico do The Guardian, se deu ao trabalho de listar cinco razões (é absurdo, personagens peidam e arrotam, personagens são sem personalidade, a escrita é um pesadelo e não é engraçado) para criticar, treze anos depois, a premiação. No mesmo Guardian, Nicholas Lezard compara-o a obras de Evelyn Waugh.

Sem ser o melhor livro de Ian McEwan, Amsterdam é cheio de trechos excelentes. A certa altura, Vernon não tem certeza de que existe. O amigo compositor, por sua vez, vive delírios com Beethoven e, numa cena hilariante de tão ridícula, tem certeza de que é um gênio.

Entre lances de maestria estilística e humor inusitado, o diagnóstico de McEwan é que essa geração, uma elite cosmopolita, culta e sofisticada, fundada nos valores universais dos anos 60, se deixou corromper. Seja por pragmatismo ou oportunismo, o fato é que aceitou o jogo do poder. Mas se isso é fácil de admitir sobre os outros, difícil é dizer de si mesmo. Os dois amigos são  complacentes com suas próprias ações, justificadas por “valores superiores”, na medida oposta em que se tornam o juiz dos atos um do outro.

É por essa rede de relativismos que Amsterdam continua um livro atual. Ainda que o escândalo sexual, que remete ao caso do ex-presidente americano Bill Clinton e sua estagiária, e os métodos do jornal de Vernon – quinze dias, meu Deus, para publicar uma foto! – tenham ficado datados, as maquinações dos personagens são um guia para os malabarismos morais de Tony Blair, anos depois, ao apoiar a guerra ao terror e a invasão do Iraque. Em outro trecho, Linley lamenta que alguns entre os amigos tenham passado a acreditar nos conservadores. Dez anos depois, o “Novo Socialismo” terminou com os trabalhistas salvando bancos durante a crise econômica.

Desmoralizados e expurgados do poder com a derrota para o conservador David Cameron, em 2010, os trabalhistas enfrentam o ostracismo, responsabilizados pelos ingleses pela crise. Tony Blair, assim como Gordon Brown, seu sucessor como primeiro-ministro, são políticos aposentados. Na história daquela geração, assim como na dos personagens de Amsterdam, a lição é a mesma: pragmatismo tem limite.

* Na imagem que ilustra a home desse post: Tony Blair

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