O mundo de Murakami

Literatura

18.12.12

Como ler a primeira parte de 1Q84, o novo livro de Haruki Murakami lançado no Brasil?

As primeiras páginas já dão o tom que se manterá até o fim: uma narrativa acelerada, cheia de diálogos e de cenas em constante mudança. O livro tem uma estrutura de folhetim, e o evidente objetivo é o de prender a atenção do leitor com as reviravoltas e mirabolâncias da história.

A trama oferece duas histórias paralelas, a de um homem chamado Tengo (escritor e professor de matemática) e a de uma mulher chamada Aomame (espécie de detetive/justiceira), que vão aos poucos se relacionando em torno de uma seita religiosa de práticas obscuras e sinistras. Há inventividade em muitas passagens de 1Q84, sem dúvida, e essa invenção, aliada ao dinamismo, às referências midiáticas e ao trinômio sexo-violência-fanatismo, garante a vendagem astronômica à qual Murakami está acostumado.

Para além do mercado, do marketing e das fórmulas, no entanto, pouco sobra do livro de Murakami: o estilo é cansativo, cheio de repetições e clichês, e mesmo o dinamismo da narrativa é frequentemente atrapalhado por uma série de interpolações explicativas canhestras. As intermináveis conversas entre os personagens são, na maioria, esforços didáticos sobre grupos religiosos, restaurantes, técnicas de massagem, compositores tchecos, etc. Murakami leva ao paroxismo a sábia boutade de Vladimir Nabokov: o diálogo é o paraíso do escritor preguiçoso. Um exemplo:

“Como já disse outro dia, Sakigake era originalmente uma comuna agrícola de inspiração revolucionária que, num determinado momento, resolveu cortar relações com o grupo extremista Akebono e, após uma mudança drástica em suas diretrizes, tornou-se um grupo religioso”. (p. 326)

Perdi a conta de quantas vezes o narrador insiste no fato de que a história se passa no ano de 1984 (como se o título não fosse o bastante, como se as menções a George Orwell não fossem o bastante). Tudo em 1Q84 é o reflexo de uma escolha pelo mais fácil – há muita abertura, muita explicação e nenhuma sutileza, além de pouquíssima confiança (ou sequer conhecimento) nas potencialidades dos silêncios e das insinuações. O que indica também uma equivalente falta de confiança nas capacidades do leitor. Outro exemplo:

“Os pais da garota eram Testemunhas de Jeová: uma ramificação do cristianismo que pregava o fim do mundo, fervorosos no cumprimento do trabalho missionário e que seguiam ao pé da letra tudo o que estava escrito na Bíblia”. (p. 214)

A linguagem é banal, rudimentar, e se sobrepõe sempre aos eventos rocambolescos que estão ali justamente para esconder a inépcia da escritura. É a superfície mais imediata do texto que denuncia a vacuidade de todo o empreendimento de Murakami. Não há confronto com a linguagem, nenhuma postulação de risco ou extrapolamento das fronteiras do ficcional e de seus procedimentos – somente um exercício inócuo de entretenimento.

“Não satisfeita em dominar os conhecimentos básicos da medicina esportiva, resolveu aprender acupuntura. Durante muitos anos, frequentou aulas de um professor chinês e dedicou-se seriamente aos estudos. O professor, admirado com seu rápido progresso, chegou a lhe dizer que podia atuar profissionalmente. Aomame aprendia com facilidade e tinha uma insaciável sede de conhecer a fundo todas as funções do corpo”. (p. 192)

Esperei, ao longo de boa parte do livro, o surgimento de algum tipo de virada crítica ou de desvio reflexivo que transformasse a narrativa e justificasse as definições de “épico contemporâneo”, “obra-prima” e “gênio”. Algo que lembrasse, por exemplo e mesmo que vagamente, as soluções de Ian McEwan em Reparação ou de Philip Roth em Indignação. Continuo esperando, porque a dispersividade ingênua de Murakami dura até o ponto final.

Minha espera estava amparada pelo estupendo trabalho que Michel Houellebecq fez em O mapa e o território, que virou do avesso o senso comum e a pretensa objetividade dos verbetes que pilhou da wikipedia. Esperei, portanto, que a banalidade de Murakami fosse uma estratégia, esperei que ele fizesse alguma coisa com aquilo, ao invés de simplesmente ser aquilo (para lembrar um caso próximo, é exatamente o contrário do que faz Ricardo Lísias em O livro dos mandarins, com seu uso paródico e corrosivo das frases feitas e os clichês do cotidiano).

Na aproximação da data de anúncio do Nobel de Literatura, Murakami vem aparecendo, nos últimos anos, como um dos favoritos. Isso somente ressalta a validade da ideia de que o valor literário se mede a partir dos contatos e dos enfrentamentos – os textos ganham densidade e realidade quando confrontados com outros textos. Não me parece possível qualquer tipo de aproximação entre 1Q84 e Desonra, de J. M. Coetzee, por exemplo, ou A pianista, de Elfriede Jelinek, Tudo que tenho levo comigo, de Herta Müller ou Volta ao lar de Harold Pinter.

O curioso é que não é preciso sequer sair das páginas de 1Q84 para observar essa discrepância: o próprio autor se encarrega de torná-la evidente. A partir da página 361 de seu livro, Murakami começa a citar longos trechos de Tchekhov – a prosa concisa e radiante de Tchekhov! Além da interpolação gratuita e sem qualquer nexo com a história contada até então (o que diz respeito a um aspecto técnico das escolhas estéticas), os trechos citados por Murakami apenas reforçam a incontornável insuficiência de sua própria prosa.

O que permanece inexplicável é a extensão do romance: como suportar a ampliação desse cenário para mais dois volumes, prometidos para 2013? O livro inteiro supera as mil páginas – a divisão em três partes é uma decisão editorial que se repetiu em muitos países. Para aqueles que decidirem continuar acompanhando 1Q84, talvez sirva a esperança de que Murakami continue citando Tchekhov.

* Kelvin Falcão Klein é autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (2011).

Contraponto: leia o perfil de Haruki Murakami por Paulo Nogueira.

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