Cartas na mão ou no micro

Correspondência

18.07.11

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Caro José Geraldo,

Eu assisti aos dois filmes que você mencionou, a propósito de turfe. O dos Irmãos Marx, engraçadíssimo, e O grande golpe, do também grande Stanley Kubrick, um daqueles filmes comerciais americanos que acabam por se tornarem clássicos. E aquela história de Joyce levando a filha ao psicanalista, você sabia que este psicanalista era ninguém menos do que Jung, residindo, como Joyce, em Zurique, Suíça? Não sei se você já leu o livro Formas breves, de Ricardo Piglia. Nele há, entre outros, um belíssimo ensaio chamado Psicanálise e literatura, em que conta o episódio de Joyce, a filha e Jung. E vai mais longe para dizer que o autor que traduziu melhor a linguagem do inconsciente foi James Joyce, por sua magistral escrita associativa.

Mas, diante dessa nossa troca de ideias, hoje me deu vontade de tratar de um assunto que já vinha me tentando. A escrita e remessa de cartas por e-mail, este meio, sem trocadilho, quase sempre usado para mensagens breves.

Minha relação com a tecnologia jamais poderá ter a naturalidade da garotada de hoje. Sou uma das poucas pessoas que não possuem nem mesmo um celular. Eu e o grande escritor Luiz Ruffato. Então, entre tantas coisas boas que nos têm trazido esta nossa correspondência, uma é descobrir que o computador e a internet também servem para uma carta mais detalhada que os lacônicos e-mails. Acho também bacana que escrevamos um para o outro, mas com um olho nos visitantes do site do IMS. E fiquei feliz de receber comentários de terceiros e suponho que você também.

Durante muito tempo em minha vida, me correspondia com amigos, amigas, namoradas e, quando em viagem, sem uma máquina de escrever por perto, escrevia mesmo a mão, um ato físico, e ficava pensando em quando o destinatário recebesse a carta. Mas feliz mesmo eu ficava quando estava no exterior e via um envelopinho verde e amarelo na caixa de correspondência do lugar onde eu morava. E cheguei a escrever e publicar um conto chamado “Uma carta”, em que a protagonista, escrevendo a mão para um amante, verdadeiramente goza com o ato solitário e fica imaginando a carta, quando já tiver sido postada, mas ainda não chegou a seu destino e estará ali nos caminhos dos correios, com todas as suas emoções latentes, mas naqueles momentos para ninguém.

Vou apostar que você, Zé, sendo jornalista, já escreve com desenvoltura seus textos no computador. Já eu, em meus escritos literários, tenho absoluta necessidade de rascunhá-los a mão, para só depois passar para o computador.

Divertem-me, no entanto, as novidades tecnológicas. Parece milagre quando, por exemplo, estou num táxi e ouço o GPS guiando o motorista, como se já estivéssemos no futuro. E cheguei a ficar pasmo quando procurando um endereço, com um amigo, em São Paulo, eis que ele tira o celular do bolso e imediatamente somos localizados e também o lugar onde queríamos ir.

Diverte-me ainda mais ver um grupo de jovens, à mesa de um restaurante, comunicando-se entre si e com terceiros, via telinha do celular. E também ver na TV, nos jogos de futebol, jovens, principalmente, que veem as partidas ali ao vivo e também nos celulares. E quando o diretor de imagens os seleciona, essas pessoas acabam por ver a si mesmas como partes do grande espetáculo.

Recentemente, tive uma experiência que me deu uma noção total dessas tecnologias. Estava eu dentro de um avião, o comandante aguardando a ordem de taxiar na pista, em Congonhas, quando vi que meu vizinho de fileira assistiia pelo celular à final da Liga dos Campeões de Europa, entre Barcelona e Manchester United. Perguntei quanto estava o jogo e meu vizinho não apenas me disse que estava 2 a 1 para o Barça como trouxe o celular para o braço dividindo as poltronas. Admirável mundo novo, Zé, nós ali dentro de um avião em São Paulo e assistindo, com notável nitidez, ao grande jogo. E foi assim que vi David Villas marcar o terceiro gol do Barcelona, a milhares de quilômetros de distância. Logo depois as portas do avião foram fechadas, e o uso dos celulares proibido.

E eu, esse homem de antigamente, guardo para o final uma carta na manga. Quando tinha dezoito anos, fui aluno de um aeroclube e voava, com um instrutor ou sozinho, em diminutos paulistinhas. Voar naquele tipo de aeronave era como escrever com caneta, pois você pilotava na mão e no visual. Acelerando com a mão esquerda e dirigindo com dois pedais e o manche. Logo entendi que não poderia seguir a profissão de piloto, pois era muito tenso. Por isso, demorei a solar, que é quando o aluno é deixado pelo instrutor no avião, para voar sozinho pela primeira vez. O primeiro voo solo é constituído de três decolagens e três pousos, e os colegas do novo piloto o esperam lá embaixo para lhe dar um banho de óleo queimado, como batismo. A emoção deste primeiro voo – um encontro da pessoa consigo mesma – é tão grande que o novo piloto solta gritos de alegria, inclusive palavrões. E nunca mais vou me esquecer daquele aviãozinho do tempo das cavernas. Era um piper, e seu prefixo, PP-GOH.

Não resisti a contar essa pequena aventura, Zé Geraldo. Como não resisto a dizer que meu irmão, Ivan Sant’Anna, acaba de publicar um livro empolgante sobre desastres aéreos realmente acontecidos. Perda total, pela Editora Objetiva. Um livro emocionante não apenas pela coisa narrada, mas também pela narrativa sensível que a relata, com uma pesquisa minuciosa que nos faz entender melhor, muito melhor, os segredos da aviação.

Um grande abraço. Sérgio.

P.S.: Patética a seleção brasileira ontem.

* Na imagem da home que ilustra este post: Elisha Cook Jr. em cena de O grande golpe (1956), de Stanley Kibrick

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