O IMS lançou, em dezembro, o livro O boi no telhado – Darius Milhaud e a música brasileira no modernismo francês, organizado pelo musicólogo e pesquisador Manoel Aranha Corrêa do Lago. A obra faz uma análise completa sobre a composição do francês Darius Milhaud (1892-1974), uma das personalidades mais influentes na música do século XX, estudando as trocas culturais que Milhaud realizou em suas passagens pelo Brasil. Entrevistamos o violonista e arranjador Paulo Aragão, integrante do premiado Quarteto Maogani de Violões, além de professor da Escola Portátil de Música, acerca da música de Milhaud.
1) Quais são os elementos que, mais claramente, Milhaud tomou da música brasileira na hora de compor “O boi no telhado”?
São muitos os depoimentos de Milhaud sobre sua chegada ao Brasil, em pleno carnaval de 1917, e sobre o impacto do primeiro contato com a música popular brasileira. Nestas passagens, o compositor descreve a “invenção melódica originada a partir de uma imaginação prodigiosa”, a “riqueza rítmica que se renova incessantemente”, além de louvar compositores como Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá.
A descoberta desse novo manancial se faria presente em mais de uma dezena das obras de seu extenso catálogo, tanto em obras em que Milhaud parte de uma “ambiência” brasileira para compor, quanto em outras em que ele se utiliza de citações literais de melodias brasileiras. Podemos considerar “O boi no telhado” como um ápice deste segundo processo, uma vez que a peça é totalmente estruturada em citações de cerca de 30 peças brasileiras. Essa seleção é bastante curiosa: há peças que se tornaram clássicos da música popular brasileira ao lado de muitas outras (a maioria) hoje totalmente desconhecidas; há peças absolutamente singelas de compositores do carnaval ao lado de obras de compositores clássicos nacionalistas.
Há de se ressaltar que “O Boi” foi composto em Paris em 1919, nos meses que se sucederam à partida do compositor do Rio de Janeiro. É interessante perceber que este contato com a música brasileira vai aguçar o interesse de Milhaud por manifestações musicais em todo o mundo, inaugurando um caminho que faria dele um dos compositores clássicos mais sensíveis aos sons populares no séc. XX, do jazz ao folclore francês, da música do caribe às tradições judaicas.
2) Por outro lado, o que a música de Milhaud conserva da tradição francesa?
Plenamente inserido em um cenário vanguardista, Milhaud foi um compositor com uma linguagem composicional bastante pessoal, incrementada pelos muitos olhares que lançou a expressões musicais de diversas partes do mundo.
“O boi no telhado” é uma peça leve, de um compositor jovem (então com 26 anos), que se utiliza de citações de músicas populares brasileiras em uma engenhosa construção musical, de caráter praticamente cubista. Os temas são citados quase que literalmente, ainda que muitas vezes apareçam sobrepostos e quase sempre através da utilização da politonalidade, recurso em voga entre compositores como Ravel e Stravinsky, e que Milhaud usou de forma muito pessoal, como uma assinatura de seu estilo.
Dessa forma, podemos identificar n’O Boi uma estrutura muito sólida, fruto de um forte embasamento técnico, ao lado de procedimentos varguardísticos, que vão desde os experimentos politonais até um olhar atento à música popular urbana, muito em voga a partir de compositores como Erik Satie.
3) De início, Milhaud não se interessava muito pela obra de Villa-Lobos, criticando a ausência de um elemento nacional expresso “de maneira viva e original”. De acordo com Milhaud, “a influência do folclore brasileiro, tão rico em seus ritmos e sua linha melódica tão peculiar, se faz raramente sentir nas obras dos compositores cariocas”, acrescentando que, quando uma dança ou melodia popular aparecia na composição brasileira, era filtrada pelas lentes de Wagner ou Debussy. Apesar de Milhaud ter mudado de opinião sobre Villa-Lobos, você acha que a visão dele está correta em algum sentido?
Milhaud teve um papel extremamente atuante na vida musical do Rio de Janeiro nos anos em que esteve na cidade. Promoveu concertos, estreou obras suas e de compositores contemporâneos brasileiros e europeus, se envolveu diretamente na produção local (foi extremamente atuante na “Sociedade Glauco Velasquez”, em homenagem ao compositor recém falecido), além de dar aulas e dialogar com as mais importantes personalidades da época.
Além disso, teve o indiscutível mérito de ter sido um dos primeiros a chamar a atenção para a música que fervia nas ruas, quase que ignorada nas academias e escolas de música.
As comparações com Villa-Lobos são naturais e podem ser promissoras, mas devem ser cuidadosas, visto que o relacionamento com a música e com os músicos populares se deu de forma naturalmente diferente entre os dois compositores.
É fato que a música de Villa-Lobos na época tinha embalagem francesa, e muito pouco dos elementos que ele viria a usar contundentemente nos anos seguintes. É fato também, como apontam muitos musicólogos, que o afloramento de uma postura assumidamente nacionalista em Villa-Lobos só se daria alguns anos depois (a partir de 1923), quando de sua chegada a Paris – como se nesse momento ele tivesse compreendido que o fator nacional seria condição para uma possível inserção no cenário musical internacional.
Mas o contato prévio de Villa-Lobos com a música e com os músicos populares, especialmente àqueles ligados ao universo do choro, permitiu-lhe usar elementos típicos dessa música insuspeitos a todos os outros compositores da época – a Milhaud inclusive. A mitologia em torno do compositor – fomentada por ele próprio – faz com que as discussões quase sempre girem mais em torno da autenticidade do convívio de Villa com os chorões do que da identificação de elementos decorrentes desse convívio em suas obras. Uma escuta da obra de Villa-Lobos a partir de certos parâmetros dessa música popular urbana pode ser reveladora. Poderíamos apontar como emblema dessa perspectiva o “Noneto”, estreado em Paris em 1923, e que funciona como um cartão de visitas do compositor na Europa, mesclando uma sonoridade totalmente vanguardista a um profundo mergulho na música popular urbana, especialmente do Rio de Janeiro. A peça está repleta de elementos que evocam procedimentos usados pelos conjuntos populares: verdadeiros mosaicos rítmicos mesclando levadas de gêneros em voga, como o tango brasileiro, a polca, o maxixe; e até mesmo discretas citações (muito menos literais do que em Milhaud) de choros famosos como “Apanhei-te, cavaquinho” e “Língua de preto”.
O olhar de Milhaud é de certa forma um olhar de fora para dentro, de alguém que conheceu a música brasileira de perto, mas que, segundo seu próprio depoimento, aprendeu “seus segredos” mais através do estudo de partituras do que do convívio in loco com os músicos populares. O que não torna sua abordagem menos importante, muito pelo contrário.
São dois olhares pioneiros que se complementam e que proporcionaram um painel musical que poucas culturas podem se orgulhar de ter.
4) Que relações podemos traçar entre a música de Milhaud e a de Ernesto Nazareth?
Os depoimentos de Milhaud sobre Nazareth mostram o quanto ele o admirava: “Seu toque fluido, inapreensível e triste ajudou-me também a conhecer melhor a alma brasileira”. Ou ainda, sobre Nazareth e Marcelo Tupinambá: “A riqueza rítmica, a fantasia sempre renovada, a verve, o impulso, a prodigiosa invenção melódica que se encontram em cada obra desses dois mestres fazem desses últimos a glória e a joia da arte brasileira”.
A textura pianística extremamente sofisticada da obra de Nazareth seguramente influenciou as obras de caráter brasileiro na obra de Milhaud, especialmente naquelas escritas para piano. Isso é especialmente nítido na rítmica de tango brasileiro em diversas peças das “Saudades do Brasil”, e na “Brasileira” (3º movimento da suite “Scaramouche”), que evoca o tango “Brejeiro”, de Nazareth. Além disso, há nada menos do que quatro peças de Nazareth citadas em “O boi no telhado” (são elas “Carioca”, “Escovado“, “Ferramenta” e “Apanhei-te, cavaquinho“).
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O show realizado no IMS por ocasião do lançamento de O boi no telhado.