Ainda os boleiros e outros tópicos

Correspondência

22.08.11

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Caro José Geraldo,

 

Está aí um filme que não perco de jeito nenhum: Heleno, do José Henrique Fonseca. Mas, como você disse, cenas de lances ficam artificiais no cinema. No caso, o ator teria de ser craque, o que Heleno sem dúvida foi, mas, se o filme conseguir mostrar os bastidores do futebol bem mostrados, o diretor já terá marcado um golaço. Mostrando o jogo jogado, os outros jogadores também precisariam ser convincentes com a bola nos pés, pois Heleno atuou em grandes times. E também teria de haver (ou será que haverá?) o público daqueles tempos, campos pequenos e coisa e tal.

O bom filme O medo do goleiro diante do pênalti, de Win Wenders, adaptado do também bom romance de mesmo nome, de Peter Handke, só fracassa nuns poucos momentos de cenas de campo. Aliás, o futebol não é o tema central do filme.

Você, com certeza, sabe que o apelido de Heleno era Gilda, por causa da personagem do cinema interpretada por Rita Hayworth, bela, boêmia e temperamental, assim como foi Heleno, só que no masculino. Chegou aos meus ouvidos que uma vez o Heleno, jogando pelo Botafogo contra o Fluminense, em Laranjeiras, depois de ouvir em coro a torcida tricolor gritando “Gilda, Gilda”, fez um gesto obsceno para a social do Fluminense. A polícia teve de fazer o possível e o impossível para evitar uma invasão de campo, coisa aliás comum naquela época. E lembro-me de uma reportagem cruel da revista O Cruzeiro mostrando o Heleno, gordo e desgrenhado, batendo pênaltis imaginários no hospício em Barbacena.

Uma coisa que fico pensando é que é uma lástima que as jogadas dos grandes craques de um passado mais remoto não possam ser vistas e revistas por falta de uma tecnologia adequada na época. Ah, como eu gostaria de assistir a lances de Domingos da Guia, Tim, Romeu, Perácio, Leônidas e tantos outros, verdadeiros mitos que meu pai e meus tios recriavam verbalmente diante de nós.

Gostei bastante de Boleiros, de Ugo Giorgetti, mas de fato as jogadas de campo não convenciam nem pretendiam convencer; o tom de comédia, por exemplo no caso do juiz ameaçado, permitia isso. A Boleiros 2, não assisti. Já Garrincha, Alegria do Povo deu tão certo porque foi um documentário de um grande diretor, Joaquim Pedro de Andrade, com lance reais do genial Garrincha sendo mostrados.

De vez em quando, eles passam na TV algumas cenas de futebol de um passado já longínquo, dando à gente o gostinho de ver em campo, por segundos, craques como Puskas e Di Stefano, maiores do mundo em sua época. Ah, e os jornais cinematográficos, um deles espanhol, chegando a compensar a propaganda franquista com os jogos do time infernal do Real Madri.

Hoje é moleza: a gente vê qualquer jogo, seja lá onde for. E devo confessar que boa parte do meu tempo vai nisso. E fico pensando no verdadeiro acervo pessoal que os jovens de hoje vão montando com os seus celulares nos estádios. Todo mundo é cineasta e documentarista.

Dando uma ligeira guinada no assunto, costumo ligar a televisão também em busca de filmes, sem nenhum planejamento. E não me incomoda nem um pouco – acho até divertido – ver um pedaço de filme junto com um pedaço de outro e de mais outro.

Como você, vou pouco ao teatro, mas nesta sexta passada vi Tio Vânia, de Tchekhov, com o Grupo Galpão. Não me entusiasmou. De autores extraordinários como Shakespeare e Nelson Rodrigues, gosto também de ler as peças. Quando a dramaturgia é tão boa, muitas vezes é preferível ler as peças a assistir a espetáculos quando não estão à altura delas.

Esta conversa me trouxe à lembrança um dos programas mais divertidos – e cruéis – de minha vida. Tratava-se de uma colagem de um grupo pretensamente de vanguarda de textos de Artaud, Van Gogh, Tchekhov, Gogol, Arrabal, Shakespeare, Oscar Wilde e vários outros. O espetáculo foi realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Paris, que tinha um dos teatros mais modernos da cidade. A fina flor do público mais radical estava presente, mas, aos poucos, se percebia que era tudo uma enganação pretensiosa e chatíssima. E, a determinada altura, como se previamente ensaiado, alguém gritou da platéia: “Assez!” (Chega!). E, a partir desse momento, boa parte do público começou a responder às falas que vinham do palco, a jogar bolinhas de papel, balas, amendoins, gaivotas de papel etc. em direção ao elenco. Enfim, um empastelamento do espetáculo. E os atores se mantendo firmes, lá no palco, até chegarem ao final do espetáculo, para agradecer formalmente a esse linchamento estético.

Uma das coisas mais notáveis do público francês – pelo menos até 1968, quando estudei em Paris – é a sua disposição à vaia, quando não gosta de algum espetáculo, às vezes cometendo injustiças históricas, como com Claude Debussy, Eric Satie e o anarquista Alfred Jarry, este já em sua primeira peça. Aqui no Rio se vaiou Nelson Rodrigues por motivos “morais”. E acho que foi ele quem disse que a vaia é consagradora. Sem dúvida é uma catarse coletiva, mas o pessoal costuma vaiar mesmo é no futebol, no que tem todo o direito. Só não pode é passar disso. De resto, Viva a Vaia, como no poema de Augusto de Campos.

E assim me despeço, Zé, com um grande abraço. Sérgio.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: o ator Antonio Edson em montagem de Tio Vânia, de Anton Tchekhov, com direção de Yara de Novaes

 

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