O escritor David Foenkinos

C. Hélie/Gallimard

O escritor David Foenkinos

Algo tão irrelevante quanto a realidade

Literatura

15.02.17

Florence Foster Jenkins (1868-1944) foi uma péssima cantora. Não mediana, nem mesmo ruim, mas péssima. Graças a Florence: Quem é essa mulher?, longa que retrata a trajetória da cantora, Meryl Streep, uma atriz excepcional — não mediana, nem mesmo boa, mas excepcional —, recebeu sua vigésima indicação ao Oscar. Tanto o exemplo de Florence quanto a condução do filme oferecem grandes oportunidades para que se diga duas ou três coisas sobre o conceito de crítica.

Florence viveu para a música, como não se cansam de repetir seus admiradores ao longo do filme. Abonada, ela amparou artistas e ajudou a reunir e fortalecer uma parcela da cena musical nova-iorquina na primeira metade do século passado. Seu ponto fraco — que só pode ser considerado assim na medida em que ia de encontro às suas ambições — era a voz, pouco ou nada adequada ao canto lírico. Sem se deixar intimidar por algo tão irrelevante quanto a realidade, Florence resolveu gravar um disco. Também resolveu se apresentar no Carnegie Hall. Suas performances atestam que, se o melhor que um desempenho mediano provoca é indiferença, o péssimo não raro é seguido de perto pelo riso.

O diretor Stephen Frears é hábil ao mobilizar os truques que garantem a atenção imediata e total do espectador. Aliada à performance cativante de Meryl Streep, a boa condução da trama opera um milagre considerável. Na medida em que se sucedem, os recursos que auxiliam na construção da protagonista — da confissão da doença contraída ainda na juventude às sucessivas demonstrações de insegurança e desamparo — tornam mais e mais improvável que alguém permaneça indiferente ao drama de Florence Foster Jenkins. Quando explodem, as vaias em um teatro lotado parecem terrivelmente injustas. Convencidos que estamos do valor de Florence, não queremos que ela, sincera em seu amor pela música e sua tentativa de se tornar uma boa cantora, seja ferida pelo público e pela crítica.

Não demora muito para que a narrativa, com a manipulação cada vez mais evidente, se revele um melodrama. Fica claro que a principal motivação de Florence, tal como aparece no filme, não é a vaidade. Bondosa, ela espera divertir e distrair o público, com destaque para os soldados combalidos que retornavam do front europeu na década de 1940. Florence parece não compreender que o que torna sua performance atraente é justamente o que nela há de grotesco. Seja como for, o espetáculo surte o efeito desejado. Todos parecem contentes: o público com o riso debochado, Florence com a convicção de que está agradando. Até que um palhaço entra em cena para estragar tudo: o crítico.

Em uma narrativa dominada por uma figura ingênua e bem-intencionada — uma figura que precisa ser mantida a salvo do mundo real —, um crítico que escancarasse a farsa só poderia funcionar como uma espécie de vilão. O papel cabe a um sujeito sisudo, ligado ao jornal New York Post, que se recusa a aderir à rede de proteção que, na surdina, se estabelece em torno de Florence. Mantido graças ao suborno da imprensa e de parte dos espectadores, o suporte tem a função de preservar Florence da consciência do próprio fracasso.

A maior indulgência, no entanto, pode ser observada entre aqueles que se beneficiam do mecenato de Florence Foster Jenkins, todos ligados à cena musical. Uma mulher pobre que acalentasse o mesmo sonho e demonstrasse o mesmo desempenho de Florence receberia outro tipo de tratamento. Na improbabilidade de ser ouvida, não poderia controlar a reação que se seguiria —  na melhor das hipóteses, um profundo horror. O que em uma mulher rica é excentricidade benévola, em uma mulher pobre pareceria insanidade.

No caso do crítico do Post, que não aceitou a cédula estendida pelo marido de Florence, mais do que um sujeito que respeita (a) a si mesmo, (b) a própria função e (c) o veículo para o qual escreve, ele se sobressai como alguém insensível e desprovido de humor, disposto a destruir a ilusão da boa Florence. Ao contrário dos outros espectadores, o crítico não se diverte nem se enternece com a performance horrenda.

No fim das contas, Florence enaltece a ideia da gratificação extraída da mera busca por um objetivo inatingível. O descompasso entre a expectativa e a realidade surge não como um problema, mas antes como uma condição para que qualidades como tenacidade e resiliência possam emergir. Nessa visão romântica, a obstinação — em especial quando confrontada com uma série de fracassos — só provaria a sinceridade e a pureza de um sonho. O heroísmo de Florence Foster Jenkins residiria justamente na impossibilidade de conciliar a péssima voz com o desejo de seduzir a audiência através do canto. A ideia de que foi o dinheiro que possibilitou a Florence gravar um disco e se apresentar ao público fica em segundo plano, semiesquecida. Em primeiro, em uma sucessão indigesta, surgem as lições pueris. Não ligue para o que os outros pensam. Siga seu coração. Etc.

Florence foi tão desafinada que qualquer ouvido destreinado pode detectar a brutalidade da investida contra as notas. Isso faz com que madame Foster Jenkins seja unanimemente reconhecida — e ironizada — como a péssima cantora que foi. Estranhamente, o filme evita expor ou questionar o que há de maldoso no riso do público. Tudo é retratado como uma troca benéfica para ambas as partes — para quem ri e para quem provoca, mesmo que de modo involuntário, o riso. O divertimento do público parece inocente e libertador, mas está longe disso. Exibe o reconhecimento de um desempenho tão aquém do esperado que só pode tornar cômica a figura que o apresenta. É mais difícil medir o sucesso e o insucesso em outros campos do fazer artístico, ainda que qualquer obra ou criador que nos pareça ruim o suficiente tem o mesmo potencial de provocar o riso.

Meryl Streep como Florence Foster Jenkins em cena de Florence

Charlotte, romance do francês David Foenkinos, me pareceu engraçado em alguns momentos. É algo terrível de se admitir, uma vez que nada no enredo sugere a menor abertura ao humor. Charlotte conta a história real da pintora Charlotte Salomon, morta em Auschwitz aos vinte e seis anos, grávida de cinco meses. O riso, desnecessário dizer, não tem nada a ver com Charlotte ou com a vida de Charlotte, uma vez que não não é possível enxergar Charlotte no livro. Se o andamento de Florence ajuda o espectador a compreender a protagonista, quando não a compartilhar de seus delírios, não existe imersão na história de Charlotte Salomon. Tudo na narrativa de David Foenkinos é profundamente caricato e artificial, e por um motivo bem simples: Foenkinos não está entre os melhores escritores da atualidade.

Para indicar que dois personagens estão prestes a fazer sexo, Foenkinos escreve que eles “roçavam a consagração sensual”. É difícil conter o riso. O autor talvez tenha partido de uma boa intenção — ele se diz fascinado pela artista, ainda que o fascínio não o tenha impedido de derrapar no sensacionalismo e no tratamento raso que caracterizam boa parte das obras que tentam recriar os horrores do Holocausto —, mas as boas intenções, como prova o exemplo de Florence Foster Jenkins, não serve como fator atenuante no caso de um resultado desastroso. Entre a concepção e a realização, e não apenas na criação artística, há um longo caminho a ser percorrido.

É surpreendente que Florence, que reclama que um pianista mais exaltado está “estuprando seus ouvidos”, seja incapaz de perceber que sua voz é um desastre. No caso dela, é improvável que mesmo o treinamento mais duro alterasse a (má) qualidade do canto. Para um diletante, nada disso importa. Para alguém que busca o reconhecimento ou a confirmação de um talento, sim. Quem se expõe ao público se expõe à crítica.

Assim como Florence Foster Jenkins apostou na interpretação de peças que excediam em muito a sua (para todos os efeitos, nula) capacidade, um escritor nem sempre é bem-sucedido ao tentar analisar e dimensionar os temas disponíveis no momento de iniciar um novo trabalho. Não me refiro à capacidade de reconhecer e respeitar o (para todos os efeitos, ilusório) lugar de fala, mas a algo mais complicado. Não se trata de impedir ou desencorajar a exploração de certos assuntos, mas, uma vez que o dever de assumir riscos faz parte do pacote, de exigir de um autor que demonstre a força ou o engenho que exigem cada assunto, cada abordagem e cada estratégia. Vale o esforço de analisar os truques e artifícios a serem mobilizados para garantir que um tema receba o tratamento estético necessário àquilo que se quer dizer e fazer, no que pese, nessa ideia de necessidade, a questão ética — no caso de um livro como Charlotte, ética e estética são inseparáveis.

E há outros fatores a se considerar. Durante a escrita do livro, a principal fonte de Foenkinos foi a autobiografia de Charlotte Salomon, um trabalho denso que reúne texto e ilustração. Era mesmo necessário recontar, e de forma tão grotesca, algo que já havia sido narrado? O editor de Foenkinos, talvez por haver enxergado no livro alguma vantagem comercial, diria que sim. A crítica, no entanto, poderia responder essa pergunta de formas diferentes — sobretudo porque o sucesso comercial e a qualidade do entretenimento não estão entre suas ferramentas para medir o êxito de um romance.

Há muito a ser discutido aqui, é claro. Poderíamos lembrar que Philip Roth utilizou Anne Frank como personagem de O escritor fantasma, e que o fez de modo, digamos, ousado. E poderíamos argumentar que, mesmo exibindo a brutalidade que caracteriza alguns de seus melhores trabalhos, O escritor fantasma é uma obra-prima. Sem a crítica, e sem as divergências entre a crítica, esse debate se perde. Por isso (o que é uma obviedade) a liberdade de crítica é fundamental.

Gosto de um texto que questiona de que maneira a atividade crítica, que costumava ser “um esporte sangrento”, se tornou “tão benigna e polida”. Com a valorização do discurso fácil que procura recompensar aqueles que, a despeito das dificuldades e das limitações, resolvem perseguir seus sonhos, como se a capacidade de idealização devesse se sobrepor à capacidade de realização, a guinada à brandura é previsível. A condescendência, porém, não vai nos levar muito longe.

No caso da literatura, temos ainda menos razões para melindres. Se, como quer Milan Kundera em A arte do romance (em tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca para a Companhia das Letras), “descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser do romance”, e se o “romance que não descobre algo até então desconhecido da existência é imoral”, é difícil imaginar um escritor que, como Florence, precise ser protegido da verdade e do mundo real. Ao contrário: é o escritor que deve não apenas trazer uma ou outra verdade à luz, mas exibi-las da melhor forma possível. O crítico que não a reconhece é, como sustenta Walter Benjamin em um texto altamente irônico, imoral. Mas nem mesmo um mau crítico pode ser considerado um vilão.

No filme, o riso do crítico do Post — e ele não ri em momento algum — destacaria sua crueldade ou humanizaria sua figura? Seu riso seria de escárnio ou seria, como o do público, deliciado? No contexto de Florence, tudo indica que o riso do sujeito do Post deixaria entrever o sadismo atribuído a qualquer crítico, o que se aproximaria da gargalhada macabra de um vilão caricato. Da maneira como foi construído, não há espaço para nuance no personagem. A estratégia de fazer dele o causador de todo o mal respeita a coerência interna de uma narrativa que, sob todos os aspectos, se destaca pelo lugar-comum — e por isso mesmo seria ilusório esperar por alguma modulação onde não pode haver nenhuma. O crítico é o sujeito ranzinza que feriu Florence, e nada além.

Não é incomum que críticos mais jovens exibam a recusa em fazer uma avaliação negativa como uma espécie de atestado de caráter. Se a principal preocupação de um texto é não ferir suscetibilidades, disfarçar o que tem a dizer, ele não serve à crítica, mas a outra coisa. Quem não faz crítica negativa não faz crítica. A crítica deve ser, sempre, mais do que um mero juízo de gosto. Mas chega o momento (sempre, sempre chega) em que surge uma Florence, ou um Foenkinos. Enviei minha resenha de Charlotte para a Folha de S.Paulo com um suspiro de fazer o quê.

Penso em Barbara Heliodora, crítica teatral que nunca se esquivou da difícil tarefa que tinha pela frente. Por ocasião de seu falecimento, os textos que comentavam a longa e inspiradora carreira de Heliodora não raro assinalavam a dureza de seus juízos, o que não deixa de causar alguma surpresa. Marcar a severidade de um crítico é como marcar a mera afinação de uma cantora lírica: condição sine qua non para se fazer o que se faz com um mínimo de competência. É matéria-prima a partir da qual alguém pode começar a pensar em trabalhar. Não é, ou não deveria ser, um diferencial.

Todorov tinha razão ao ver a literatura e sua crítica como complementares. Se (de novo ele) Milan Kundera vê a arte do romance como uma arte de resistência, vejo a crítica, em uma época de best-sellers vergonhosos e de condescendência feroz, como uma importante aliada nessa luta.

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