À maneira de Braga: Manhã no apartamento, por Chico Mattoso

Literatura

20.06.11

O Instituto Moreira Salles acaba de lançar uma nova edição dos seus Cadernos de Literatura Brasileira. O número 26 da série, iniciada em 1996, é dedicado a Rubem Braga, o maior criador da moderna crônica brasileira. Em meio às homenagens prestadas pelo IMS ao cronista, o blog do IMS convidou os escritores Vanessa Barbara, Antonio Prata, Chico Mattoso e Cecília Giannetti para criar um texto à maneira de Rubem Braga.

Abaixo, segue a colaboração de Chico Mattoso.  “Gosto do Braga por zilhões de motivos diferentes. Um deles é o jeito com que ele descreve o espaço doméstico, aquilo que ele chamou de ‘asilo inviolável do cidadão triste'”, diz Chico. “Ninguém falou da própria casa como ele, ninguém entendeu tão bem o que significa morar num lugar. Escrevi tentando entrar nessa sintonia.”

Manhã no apartamento

Acordo com uma trovoada. Não: é o caminhão de lixo, que resolveu subir a rua às seis da manhã. Viro na cama. Sem querer esbarro no seu braço. “Falta muito?”, você murmura, e não sei se está falando comigo ou com algum personagem do seu sonho. Você volta a dormir. Eu me levanto com cuidado, caminho lentamente até a porta. A idéia de colocar azeite na dobradiça deu certo: a porta se abre suavemente, sem rangido nenhum.

A casa, como você, ainda não acordou. Uma seda fina parece cobrir os móveis, e é pisando leve que chego à sala e me sento no sofá. Olho para as coisas que me cercam, os pequenos objetos que fomos acumulando ao longo do tempo, e por um momento sinto que não sou eu que os observo, mas o contrário: são os objetos que me encaram, recebendo-me em seus domínios com silenciosa hospitalidade.

É curioso. Aos poucos, começo a perceber que o lugar em que vivemos ganhou uma espécie de independência: os quadros que queríamos pendurar, os livros que prometemos colocar na estante, a cortina que nunca ficou pronta, tudo parece ter encontrado um lugar para si, como se tivesse estado sempre ali, como se não dependesse da nossa presença para continuar existindo.

Eis uma ideia esquisita ? uma casa que não precisa de nós, assim como a rua, o bairro, o resto do planeta. Estamos sozinhos. Somos dois estranhos tentando sobreviver num mundo hostil, que se move segundo forças que não conhecemos nem podemos controlar. Um nó aperta minha garganta, alguma coisa localizada entre a angústia e a vontade de tomar água.

Antes que eu possa me levantar, a porta do quarto se abre e revela uma mulher recém-desperta, de cara inchada e olhos espremidos. Caminhando como um zumbi, você passa reto pelo banheiro, esbarra na poltrona e vem sentar-se ao meu lado. Encosta a cabeça no meu ombro. Ficamos uns instantes em silêncio, e tenho a impressão de que você adormeceu mais uma vez. “Aconteceu alguma coisa?”, você pergunta, e eu tenho vontade de responder que sim, que aconteceu muita coisa, que descobri algo terrível sobre o mundo lá fora e agora não nos resta outra alternativa senão continuar juntos e tentar proteger um ao outro, torcendo para que o sofrimento nunca nos alcance ? ou que demore muito para chegar.

Não digo nada disso. Respondo apenas que fui acordado por uma trovoada, ou pelo caminhão de lixo, e que acabei perdendo o sono. Você me abraça, dá um beijo no meu pescoço, acomoda melhor a cabeça sobre meu ombro. Ficamos mais uns segundos olhando pra frente, até que você levanta a cabeça e, finalmente acordada, dá uma espiada ao redor. “Quando é que a gente vai pendurar esses quadros?”, você pergunta, ao que eu reajo com uma resposta genérica ? e então a gente troca um sorriso cúmplice e começa a pensar no café da manhã.

Chico Mattoso é escritor. Publicou, entre outros, Nunca vai embora (Companhia das Letras, 2011) e Longe de Ramiro (Editora 34, 2008)

, ,