À maneira de Braga: Descarga, por Cecília Giannetti

Literatura

21.06.11

O Instituto Moreira Salles acaba de lançar uma nova edição dos seus Cadernos de Literatura Brasileira. O número 26 da série, iniciada em 1996, é dedicado a Rubem Braga, o maior criador da moderna crônica brasileira. Em meio às homenagens prestadas pelo IMS ao cronista, o blog do IMS convidou os escritores Vanessa Barbara, Antonio Prata, Chico Mattoso e Cecília Giannetti para criar um texto à maneira de Rubem Braga.

Abaixo, segue a colaboração de Cecília Giannetti, que comenta sobre a inspiração para esta crônica: “Lembrei que Rubem tinha morado no meu bairro. Essa rua Bento Lisboa é bem atrás de onde moro, e é mencionada pelo autor em algumas crônicas. Acho mesmo que a tal pensão de que ele fala numa delas, sobre duas mocinhas filhas de dona de pensão, pode mesmo ser um dos três hostels que andam apinhados de gringos aqui, próximos”, diz Cecília.

Descarga

Nunca se assustou com a modéstia do quartinho, que visitou sem interrupções por dias e noites seguidos. Nem demonstrou qualquer receio pela localização no inglório bairro do Catete, à rua Bento Lisboa, em antiga pensão convertida em albergue, ou hostel – nome hostil que quer dizer exatamente o oposto do que sugere: é desses lugares que recebem mais ou menos bem os gringos que hoje em dia vêm às pencas, mesmo fora do que antes se chamava “a alta estação”. Hoje vivemos em altíssima, mesmo quando os termômetros eletrônicos apontam 15 graus (frio ridículo para quem sabe o que acontece abaixo de zero, gelo para quem cresceu sob verões de mais de 40). Cuidou de mim enquanto achou necessário. Um dia, simplesmente, não voltou mais.

Instalam-se nesses hostels, os estrangeiros, em múltiplos quartos. Dormem em beliches que rangem, presentes nos predinhos estreitos, renovados dos anos 1940, apenas para o café da manhã de frutas de temporada, torradas de proveito do pão que já não era mais fresco, e queijo minas barato. Retornam para madrugadas de exaustão (não há aqui o toque de recolher) e roncos em quartos coletivos. Dividem-se entre mochileiros jovens e viajantes com dinheiro e sem opções, grupos entusiasmados por tudo que propagandistas locais e de revistas importadas dizem ser carioca e muito de nosso feitio – seja lá o que for mesmo isso. Estrangeirada de quem me sinto próximo, pelo jeito largado que se deixam ficar por aqui. Querem tanto estar na mais bela cidade, do mais belo país da estação. Não cabem mais nos hostels e hotéis de outros cantos da cidade mais badalados, abastados. Naufragaram aqui por forte desejo, feito o meu. EU, mais estrangeiro ainda, que sou daqui e não me sinto em casa. Sempre existe um mistério de cidade oculta que procuro na minha, e falho em descobrir.

O quartinho, eu alugava nesse hostel da Bento Lisboa. Ficava perto do jornal, a quarenta minutos de caminhada – pelo menos a ida, em dia claro, eu tinha garantida no sossego de poupar o táxi das urgências jornalísticas (embora jamais tivesse havido alguma que merecesse tal alcunha; eram sempre destroços de supostas novidades). O retorno era incerto. Podia-se sair da redação tanto às onze da noite quanto as duas da manhã. Nenhum ônibus a varar as ruas urinadas, a de Sant’Anna e a Riachuelo, ensopadas de chuva, transbordando lixo e ratos. Taxistas sabidos passavam bem devagar pela fachada semiadormecida do jornal. Aí era minha carteira ou minha boca cheia. E meu salário só dava pro quartinho na Bento Lisboa, mais umas roupas que eu repetia muito, obrigatoriamente não mal-ajambradas. Em jornal é preciso fingir elegância pelo menos nos modos de vestir. Nessa situação, pouco me sobrava de troco para a madrugada chuvosa que sempre vinha.

O dia em que pensei que podia andar em cima d’água, que acreditei que poderia ser diferente, talvez alguém que não fosse foca cuspindo palavras que não eram minhas, pensei até em trabalhar em padaria. Não foi por obra e coragem minha, por falta de moedas para voltar ao albergue, quero dizer: hostel, tão cheio de gringos. Foi coisa de um raio que bateu em mim. Não acredito que o leitor já tenha passado por situação similar. Sei de pouquíssimas pessoas – nenhuma fora de pesquisa britânica (britânico faz muito pesquisa besta) traduzida em nossa imprensa, ou próxima, a ponto de apertar as mãos, caso sobrevivesse – que tenham enfrentado tamanha descarga de eletricidade pelo corpo.

O que me ocorreu na noite chuvosa, em que esperava na rua a providência, sem dinheiro para o trajeto de táxi, foi exatamente isto: atingiu-me um raio. Estremeci no chão não sei por quanto tempo. O guardinha da porta do jornal, não sei se me chutou para ver se eu vivia, se fingiu não ver. Ninguém gosta de complicação com qualquer coisa que seja. Não se pode esperar muito.

Em algum momento me carregaram dali. Peso pouco hoje, pesava então menos ainda. Acordei, ou quase, num carro, no banco de trás, encarando um teto preto onde postes jogavam luzes às vezes, intensificando a tontura. Fechava os olhos. Procurava ouvir, distinguir uma voz masculina ou feminina, uma forma de respiração que pudesse me indicar quem guiava o veículo, quem havia me levantado do chão. Nada. Eu não sentia dor, mas toda vez que vinha do banco da frente a mão em minha direção, querendo tocar-me, procurar pulso, vida possível que tivesse se sustentado, imaginava um anjo.

Eu cheirava a churrasco. O carro inteiro cheirava a churrasco, exceto pela mão que tentava me sentir. Não era perfume de fábrica, era carne humana não chamuscada, a mais pura que se pudesse aspirar, e só sabemos disso quando estamos fedendo a toicinho, e uma coisa pura, assim, chega tão perto.

Acordei no meu beliche de baixo, com os primeiros raios de sol que batiam no bairro tão longe dos surfes e bossas da zona sul. Minha pele estava limpa como se uma cachoeira tivesse extinguido sua vida sobre meu corpo. Um aparelho bipava nervoso dentro de um dos bolsos das minhas calças. Exigências de chefes são exigências de chefes. E é desobedecendo-as que sabemos quem manda de verdade. Nunca mais voltei ao jornal. Quem o faria, limpo, inteiramente limpo?

Enquanto frequentou o apartamentinho da Bento Lisboa, o anjo jamais reclamou do bairro, nem da bagunça do hostel.

* Na imagem da home que  ilustra este post: Cecília Giannetti

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