A primeira edição (três milhões de exemplares) do Charlie Hebdo depois do atentado à redação do semanário, que deixou 12 mortos na quarta-feira passada, vai às bancas hoje com um desenho de Maomé na capa, segurando um pedaço de papel onde se lê: “Je suis Charlie”. No alto, sobre o fundo verde, a frase: “Tudo está perdoado”. Não podia haver melhor representação da resiliência do espírito desse jornal satírico que muita gente que nem terrorista é gostaria de calar.
Entre as primeiras reações ao atentado ao Charlie Hebdo, na semana passada, duas me espantaram pela argumentação em princípio lógica e politicamente correta, mas que era impensável diante da urgência e da gravidade dos fatos. Aos poucos, a mesma argumentação foi se reproduzindo em outros textos e comentários (a maioria no mundo anglo-saxão) até se configurar em um dos lados do debate. Mas guardei o espanto diante daquelas duas primeiras manifestações: uma página do cartunista e quadrinista maltês-americano Joe Sacco, publicada no The Guardian, e o comentário do escritor americano-nigeriano Teju Cole, no blog da The New Yorker.
Sacco questionava a “natureza” de algumas sátiras do Charlie Hebdo: “Embora torcer o nariz de muçulmanos pudesse ser tão permissível quanto agora acredita-se ser perigoso, para mim nunca passou de uma forma insípida de usar a caneta”. E em seguida, como provocação à sensibilidade dos (segundo ele, falsos) defensores da liberdade de expressão no Ocidente, estampava um negro caindo de uma árvore, com uma banana na mão, e um judeu narigudo, contando dinheiro sobre as “entranhas da classe operária”. E, para completar, lembrava a demissão há alguns anos do desenhista e humorista Maurice Sinet (também questionada por outros colegas de redação do Charlie Hebdo) por conta de uma crônica supostamente antissemita que ele tinha escrito sobre o casamento do filho de Sarkozy com a herdeira judia de uma grande fortuna.
Sacco trabalhou no Oriente Médio e conhece bem os horrores da guerra do Iraque e da ocupação israelense da Cisjordânia e da faixa de Gaza. Tem razão ao argumentar que o Ocidente reage em geral por uma lógica de dois pesos e duas medidas, mas erra ao confundir a sátira do Charlie Hebdo com racismo e islamofobia, dando a entender, por meio da reprodução de uma imagem das torturas de Abu Ghraib, que a barbárie da semana passada foi, em última instância, uma reação à barbárie das ações da CIA e das forças ocidentais no Oriente Médio. Sim, claro, em última instância, como a criminalidade no Brasil também é consequência de uma sociedade racista, injusta e desigual. Mas por que os terroristas franceses não atacaram alvos abertamente islamofóbicos (é o que não falta), preferindo em vez disso matar cartunistas e judeus, num ato (contra o supermercado kosher) puramente racista?
O fotógrafo e escritor Teju Cole escreve que, a despeito de uma longa história de Inquisição, perseguições, censura e caça às bruxas, quando se veem atacadas, as sociedades ocidentais recorrem à “fantasia a-histórica de uma serenidade resignada e de força moral diante da provocação”. Cole escreve que nos últimos anos o Charlie Hebdo “deu preferência a provocações especificamente racistas e islamofóbicas”, o que é desmentido com veemência pelo advogado do semanário, Richard Malka, que denuncia o “relativismo de má-fé”, em entrevista ao Libération.
Cole lembra o passado colonial da França e escreve que Voltaire, tantas vezes citado pelos franceses como o grande defensor da liberdade de expressão, era também um antissemita convicto, como se com isso quisesse nos fazer entender que o Ocidente não é o santo que imaginávamos.
Tanto Joe Sacco como Teju Cole são nomes respeitados em suas áreas. Mas é como se se dirigissem a um público ignorante e ingênuo, que ainda acreditasse num mundo livre de contradições, dividido entre mocinhos e bandidos. Para um brasileiro que vê o imperialismo por outro ângulo e conhece a história da participação da CIA nos golpes de Estado que instauraram os regimes militares e a tortura na América Latina, ainda nos anos 60, alguma coisa soa errado na associação simplória entre as provocações libertárias do Charlie Hebdo e o colonialismo francês ou Abu Ghraib.
É como se Sacco e Cole atribuíssem ao Ocidente a mesma uniformidade que os islamófobos atribuem ao Islã. Por sorte, dias depois do texto de Cole, o blog da The New Yorker publicou um comentário do crítico Adam Gopnik, explicando a seus compatriotas que os jornalistas do Charlie Hebdo nada tinham que ver com os “gentis satiristas” dos cartuns americanos e que trabalhavam, ao contrário, “em uma tradição caracteristicamente francesa e feroz, forjada ao longo da guerrilha entre os republicanos, a Igreja e a monarquia, no século dezenove”. É quase ridículo ter que lembrar que essa tradição de guerrilha das ideias na qual continua trabalhando o Charlie Hebdo foi conquistada ao longo da história também pelos que denunciaram e combateram, no Ocidente, o racismo, o fascismo, a caça às bruxas, a censura, o antissemitismo, o imperialismo, o stalinismo e o colonialismo francês. A maior vitória dos terroristas seria nos fazer ver o mundo como eles, em duas dimensões.