Qual é o problema?

Colunistas

21.06.16

Quando a redação do Charlie Hebdo foi metralhada por jihadistas, em janeiro de 2015, houve quem viesse a público para condenar a liberdade do jornal, dando uma justificativa social para o atentado. Diziam que o ato terrorista era uma reação natural (senão merecida) à suposta arrogância e ao desrespeito manifestado pelo jornal satírico francês em relação ao islamismo. Segundo essa lógica simplista (que ignorava o fato de o jornal submeter todas as religiões ao mesmo humor), o atentado seria uma reação perpetrada por filhos de imigrantes, excluídos e oprimidos, contra o Ocidente racista e colonialista que os discriminava. Seria interessante saber o que essa mesma gente teria a dizer hoje sobre o ataque à boate Pulse, em Orlando, frequentada basicamente por latinos e gays, filhos de imigrantes.

Uma certa esquerda quis explicar os atentados na França como uma reação contra o Ocidente opressor (chegando, em alguns casos, ao mau gosto e ao horror demagógico de definir as vítimas dos atentados de novembro passado, em Paris, como felizes frequentadores de bares, por oposição à dureza e à exclusão da vida na periferia à qual estavam submetidos os terroristas). Agora, uma certa direita tenta desvincular a homofobia (que a compromete, evidentemente) do simpatizante do Estado Islâmico que cometeu o crime na Flórida, causando a morte de 49 pessoas e ferindo outras 53. São conservadores, por vezes tão embrutecidos e radicais em seu ódio quanto qualquer terrorista, que procuram atribuir o atentado numa boate gay a uma religião e a uma ideologia estrangeiras, jamais à homofobia — que eles compartilham com o jihadismo que dizem combater.

Dados do FBI mostram que o risco de um indivíduo gay ser vítima de crime de ódio (cometido por americanos brancos) nos Estados Unidos é duas vezes maior do que para negros e judeus, e quatro vezes maior do que para muçulmanos. Afinal qual é o problema? Por que é preciso eliminar os gays?

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Se o que não me diz respeito tampouco me incomoda, só me resta concluir que estamos cercados por homossexuais enrustidos e furiosos, decididos a eliminar tudo o que ponha em risco a frágil identidade que construíram para si como uma barreira contra seus fantasmas mais profundos. A outra explicação possível é que o prazer do outro lhes seja insuportável. Parece que esse era o caso do autoproclamado simpatizante do Estado Islâmico, responsável pela carnificina na boate gay de Orlando. O mais espantoso, entretanto, é a reação homofóbica ao atentado, como se diante do horror (e ao contrário do que podia prever o bom senso) a homofobia ganhasse ainda mais ímpeto; como se diante do massacre de homossexuais a vontade de se distanciar deles, de apagar todo vestígio de homossexualidade em si, se tornasse ainda mais urgente.

É assustadora a sincronia nos últimos anos das reações aos direitos conquistados pelos homossexuais em vários lugares do mundo, como na França, nos Estados Unidos e no Brasil. O esforço de fazer votar leis que restrinjam esses direitos começa a pipocar por toda parte. No território ocupado pelo Estado Islâmico, gays são atirados do alto dos prédios. Afinal qual é o problema? O que une jihadistas e cristãos conservadores no mesmo combate e no mesmo ódio?

O problema dos homossexuais em democracias frágeis como a brasileira é que, ao contrário dos Estados Unidos, as diferenças ideológicas dentro da própria comunidade gay ainda impedem a formação de uma frente ampla que evite apoios suicidas a partidos e políticos cúmplices de iniciativas e medidas homofóbicas. Que um burguês homossexual de São Paulo prefira acreditar, por interesses e afinidades de classe, que Bolsonaro ou Alckmin possam representá-lo melhor do que Jean Wyllys é um atestado da mais temerária burrice, para dizer o mínimo.

É preciso entender que o recrudescimento da repressão aos homossexuais sob a égide de populismos e oportunismos políticos e religiosos sinaliza um sério risco de perda dos direitos individuais para todos. É preciso entender que, mesmo não se debatendo com nenhum traço homossexual reprimido, a população que preza sua liberdade e seus direitos tem hoje muito mais a ver com os gays do que gostaria de imaginar.

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