Uma senhora pornográfica, e por que não?

Colunistas

07.01.15

Quando a escritora Hilda Hilst publicou sua Trilogia obscena, em 1990, duvidava-se que os relatos eróticos pudessem ter saído da pena de senhora sexagenária de vida pacata no interior de São Paulo. Impressionava – e ainda impressiona – a narrativa em primeira pessoa de O caderno rosa de Lori Lamby, relato das experiências sexuais de uma menina de oito anos, cuja ingenuidade como garotinha explorada por homens mais velhos se confunde com a perversidade sexual da criança. As aventuras eróticas da ninfeta capturam o leitor desde suas primeiras frases até seu desfecho surpreendente, num roteiro desafiador ao pânico moral contra a pornografia. Ainda impressiona porque, 24 anos depois, a pornografia continua sendo banida da sexualidade dita normal, ou melhor, o pânico moral contra a pornografia continua servindo para sustentar a ideia de que há uma sexualidade aceitável.

Hilda Hilst, 1952. São Paulo – SP. Foto de Chico Albuquerque/Convênio Museu da Imagem e do Som – SP/Instituto Moreira Salles

Foi com a menina pervertida que Hilst conseguiu chamar a atenção para a sua escrita, até então ignorada pelo público e pela crítica. Lory Lambi está na abertura de Pornô chic, reunião de textos em um volume ilustrado publicado pela Ed. Globo que contém a Trilogia obscena, o livro de poema Bufólicas, um inédito – Fragmento pornográfico rural –, além de um grupo de críticos literários, entre os quais destaca-se outro inédito, o artigo Discrição e finura, de Jorge Coli (Unicamp), no qual Hilst é descrita como uma subversiva discreta.

Inúmeras provocações acompanham o conjunto de textos de Pornô chic, que começa com uma provocação ao leitor, quando  anuncia: “Só espero que não resolvam encontrar implicações hegelianas ou metafísicas nos textos pornográficos”. Aviso que intimida qualquer crítico ou analista, obrigado a reconhecer que, de fato, Hilst não é nem hegeliana – no sentido da busca de um absoluto –, nem metafísica – no sentido da busca de uma transcendência fora-mundo que pretenda explicar o mundo. Sexo, prazer e gozo são parte de existências sem sentido, que não está nem previamente dado, nem pode ser teleológico. Existências em que corpos errantes se encontram ou se desencontram. No encontro que Pornô chic promove com a obra de Hilst, há ao mesmo tempo a expressão artística de uma mulher fora da ordem e a transgressão pornográfica presente na fase tardia de seus escritos que confundem biografia e obra.

A voz corajosa de escritora e a voz perversa de narradora se encontram na personagem Lory Lambi, cujo prazer no sexo oral com velhos senhores desafia a dicotomia de pensamento que pensa a sexualidade como submissão de vítimas a vilões. Nesse sentido, a escrita erótica de Hilst toma uma posição ideológica quando se autointitula pornográfica. A pornografia é uma enorme indústria, cuja mercadoria é o sexo, capaz de dividir opiniões entre os que a rejeitam como forma de objetificação do corpo e os que a defendem em nome da liberdade. Hilst conseguiu fazer a indústria literária se dobrar a ela, se destacando e sendo reconhecida a partir da maldição que paira sobre a pornografia, fazendo da abjeção o conteúdo de uma obra até ali considerada sofisticada demais para ser objeto de leitura. A forma mantém a sofisticação a serviço do sexo como abjeto/objeto.

Ao incorporar a pornografia à sua obra, Hilst captura a crítica numa armadilha. Teóricos se veem obrigados a dividir sua obra em duas partes, a pornográfica e a não-pornográfica, e dar a Hilst a mesma fama da pornografia: maldita. De autora sofisticada e não lida, Hilst se faz leitura obrigatória quando o erotismo invade sua escrita. Assim, Hilst e seu objeto de escrita se encontram – ela, como autora, banida do cânone literário tanto quanto a pornografia precisa ser banida da sexualidade. Ao mesmo tempo, Hilst ridiculariza toda pretensão – metafísica, por que não? – de afastar a perversão em nome da boa escrita. Esta que, para responder pelo nome de escrita, é intrinsecamente pervertida.

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