A seção Primeira Vista publica mensalmente textos inéditos de ficção, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Neste mês de setembro, Samir Machado de Machado foi convidado a escrever sobre uma foto de Alice Brill.
Meu tio Jorge certa vez me contou essa história de sua infância. Ele era filho único — digo que era meu tio por ser casado com minha tia, não éramos parentes de sangue — e tendo perdido a mãe muito cedo, aos onze anos, viviam só ele e o pai. Este, por sua vez, trabalhava num escritório do centro, perto da Rua da Praia, e não tinha com quem deixá-lo à tarde.
Seu pai saía todo dia na hora do almoço para buscá-lo na escola. Os dois almoçavam juntos e, ao voltar para o trabalho, o pai o largava na frente da Biblioteca Pública do Estado, ali na rua Riachuelo. Tio Jorge em pouco tempo aprendeu o caminho: subia o degrau da entrada e sentia o rosto feminino de madeira esculpido na porta sempre aberta, subindo sempre pelo lado esquerdo; eram então oito passos à frente (mas com o tempo e sua altura, a quantidade de passos diminuiu), passando pelo balcão da recepção; virava então à esquerda, mais oito passos, e virava à direita, onde a recepcionista do setor de livros especial já o conhecia pelo nome, e perguntava o que seria para hoje. Ah, sim, claro, esqueci de dizer: tio Jorge era cego.
A senhorinha ajudava meu tio a chegar até as mesas e o deixava com um livro em mãos. E quando me contava isso, tio Jorge sempre pedia à esposa que buscasse na prateleira da sala um dos que tinha em casa; grandes livros que ao se abrirem mostravam páginas e mais páginas em branco — na primeira vez pensei que fosse uma piada, mas logo notei as sequências de furinhos em diferentes padrões, correndo ao longo da página. Era incrível imaginar que ali havia algo escrito, uma linguagem totalmente desconhecida por mim. Ao correr os dedos pelos padrões, tive lampejos de quando fui alfabetizado, da minha surpresa ao constatar que todos aqueles desenhos eram letras e que, uma vez que aprendia seu significado, não me era mais possível olhar sem ler automaticamente. Confesso que tentei aprender o braile, mas nunca tive o empenho para isso.
Era assim que tio Jorge passava aquela época de sua vida, e sempre ao final da tarde seu pai vinha buscá-lo na hora marcada, que a bibliotecária ajudava a controlar. E então o pai, que passava as tardes detrás de uma mesa, ao lado de uma janela que dava somente para a parede interna do prédio vizinho — parede cinzenta com outras janelas, preso numa rotina com tão poucas variações que a quebra de um equipamento se tornava um evento — virava-se para o filho e pedia que contasse de tudo o que havia lido naquela tarde, toda a história, em cada detalhe: dos assassinatos misteriosos, dos dragões que cuspiam fogo, dos heróis a cavalo.
— Me conta tudo o que você viu hoje.
Meu marido, que é tradutor, conta que aprendeu a contar as sílabas poéticas com um violeiro analfabeto, que o fazia somente pelo ritmo das batidas dos dedos no violão. Eu, que de tio Jorge ganhava sempre um livro de presente nos aniversários e nos Natais, aprendi a ler com um cego. São coisas da vida.