Millôr, duas sílabas fortes, desconcertantes e gentis, cuja rima pode ser flor e também dor. Os olhos eram de águia, mas, também de pintassilgo, colibri, sabiá.
A expressão verbal adquiria nele a força do substantivo. Por isso a palavra lhe vinha sempre multidividida em punhais.
Desgarrado de toda e qualquer geração, flutuava acima daquela em que vivia, nessa terra-de-ninguém, onde é perigoso estar só e, mais perigoso ainda, acompanhado.
Seu ato de viver tinha todas as dúvidas certas. E era um ser mítico para nós que dificilmente e aparentemente lhe conhecíamos a essência. A quem o frequentava regateava o aplauso fácil porque sempre buscou, nos desvãos dessa não-troca, a verdade do gesto, da palavra e da finitude.
Esmiuçava os contrastes e aceitava combativamente as vacilações dos que abdicam.
Estoico diante da glória, “que não fica, não eleva, não honra nem consola”, resistiu sempre a toda e qualquer apoteose, embora, com toda justiça, a ambicionasse.
Como lembrança de uma dura infância de menino órfão, no seu medo, jamais se acovardou. Seu rosto guardava recordações que a memória lutava para não esquecer. Acreditava no perigo da ausência, por isso, sempre estava e nunca ficava. Sua opção era ainda estar vivo quando o ultimo respirasse. Não acreditava em Deus, mas, tinha com ele excessiva intimidade e nessa não-fé, transcendendo, conseguiu chegar aos conclusivos 88 ou 89 anos em pouquíssimos segundos, o que lamentamos, lamentamos, lamentamos.
Era visível que Millôr esteve sempre preparado para o Grande Dia. Algumas decisões tomadas: a de morrer, olhando o sol no horizonte. A de sempre brincar de Deus como uma criança. A de absolutamente só crer no destino. E no final, como um cigano ou um poeta, escutar para sempre o silencio na luz absoluta.
*Texto escrito em 2012 para ser lido na inauguração do Largo do Millôr, entre o Arpoador e a praia do Diabo, no Rio.
No site da revista Piauí, há uma gravação de Fernanda lendo o texto.
Fernanda Montenegro é atriz
O acervo de Millôr Fernandes acaba de ser incorporado ao IMS. Em seu estúdio, foram inventariados 7.858 itens, sendo 6.577 obras, material que começa a ser catalogado.