Os voos de Maura

Literatura

29.01.13

“Existo desmesuradamente, como janela aberta para o sol. Existo com agressividade.”

O avião Paulistinha CAP-4, de prefixo PP-RXK, fez uma aterrissagem forçada numa das principais ruas de uma cidadezinha do interior de Minas Gerais. A hélice enroscou nos fios do telégrafo e o avião arrastou postes, até se chocar com uma casa. Depois da perícia, constatou-se que o avião não apresentava nenhum defeito mecânico. “Sentia vontade de ver um avião cair e seria muito mais emocionante se estivesse dentro dele”, dizia Maura Lopes Cançado aos colegas de redação do Jornal do Brasil.

Em 1958, após um período de internação no Hospital Gustavo Riedel, Maura publicou seu primeiro texto no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Era uma poesia que chegou às mãos de Assis Brasil através do repórter Sebastião de França. Sebastião ainda avisou: “Ela é louca”. Ao que Assis respondeu: “Então somos dois”.

O SDJB abriu espaço para a nova geração de escritores, jornalistas e críticos. Entre eles, Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, Mário Faustino, José Louzeiro e Carlos Heitor Cony, que também eram plateia para as histórias fantásticas de Maura. “Queria este avião apaixonadamente – antes de tê-lo. Tão logo ganhei, deixou de interessar-me muito, como não me interessaram jamais as coisas possuídas”.

Aos sete anos, ainda em São Gonçalo do Abaeté, onde nasceu, Maura já encantava seus colegas de escola com as suas histórias: “Sou filha de russos, tenho uma irmã chamada Natacha, e um dos meus tios nasceu na China, durante uma viagem dos meus avós”. Mas tanto no colégio como no SDJB, a plateia diminuía à medida que as pessoas percebiam seus delírios.

Quando o seu conto “No quadrado de Joana” foi publicado na primeira página do SDJB, Maura agradeceu a Reynaldo Jardim de joelhos. O conto sobre uma esquizofrênica catatônica foi elogiado até por Clarice Lispector. E Maura se tornou escritora revelação de 1958. Mas, sem entender o que isso significava, esfolou os joelhos em agradecimento.

Maura, uma mulher “loira e bonita”, como gostava de se definir, oscilava entre uma timidez quase patológica e gestos exagerados e até agressivos. “Socialmente não tenho nenhum valor. Costumo causar sérios desastres aos meus amigos. Maria Alice Barroso disse: ?ser amigo da Maura é como viajar de avião’. Ela acha muito perigoso viajar de avião”.

Num dos episódios de agressividade, Maura atirou uma máquina de escrever pela janela da redação do SDJB. Também chegou a jogar uma estante sobre um colega sem motivo aparente. Reconhecendo a própria fragilidade se internou voluntariamente, em 1959. “Acho-me na Seção Tilemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo”.

Neste período de internação, por sugestão de Reynaldo Jardim, escreveu O hospício é Deus: diário I, publicado em 1965. O livro denunciava os abusos sofridos por Maura e outros pacientes no Gustavo Riedel e foi um marco na luta antimanicomial. “Durvalina tem um olho roxo. Está toda contundida. Não sei como alguém não toma providencias para que as doentes não sejam de tal maneira brutalizadas. Ainda mais que Durvalina se acha completamente inconsciente. Hoje fui ao quarto-forte vê-la. […] o professor Lopes Rodrigues, diretor-geral do Serviço Nacional de Doenças Mentais, proferiu, aqui, um discurso, na porta (nas portas, porque são três) do quarto-forte, dizendo mais ou menos isto: ?Este quarto é apenas simbólico, pois na moderna psiquiatria não o usamos’. Por que então estes quartos nunca estão vagos?”.

Apesar de ser tema de teses até na Sorbonne, O hospício é Deus: diário I está fora de catálogo há 20 anos. A segunda parte do diário foi esquecida por José Álvaro, editor do livro, dentro de um táxi. Nunca foi encontrada. Maura também publicou o livro O sofredor do ver, uma coletânea de contos, em 1968. Passou por inúmeras internações, numa das quais matou outra interna. Morreu em 1993, aos 63, em consequência de uma doença pulmonar. Não escrevia mais.

Num dos trechos de O hospício é Deus, Maura afirma: “as coisas perdidas e inalcançadas foram as únicas que possuí”.

* Daniela Lima é jornalista e escritora. Lançou, em 2012, o livro Anatomia, pela editora Multifoco. Atualmente, escreve a biografia de Maura Lopes Cançado, com a assistência de pesquisa de Natália Pinheiro.

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