Otto Lara Resende e Drummond: dois amigos e um abraço

Literatura

30.08.12

Quem lê a dedicatória de Drummond no exemplar de Baudelaire, de Jean Paul Sartre, na biblioteca de Otto Lara Resende, não pode deixar de ficar intrigado: “Ao Otto, meu companheiro de pessimismo, com um abraço fúnebre, Carlos”.

Com relação ao pessimismo, vá lá. Tanto para o poeta de Itabira quanto para o prosador de São João del Rey, a vida nunca pareceu cor de rosa. E mesmo que em algum momento ela tenha recebido matizes rosados,  foi o minério de Itabira que bombeou o coração do primeiro, assim como avassaladoras angústias nunca deixaram o coração do segundo em paz. Mas, fúnebre?

Imagino que, se algum pesquisador se propusesse a decifrar a dedicatória sinistra, começaria por examinar a cronologia dos dois mineiros, na tentativa de descobrir se houve perda significativa na vida de um deles por volta de 7 de dezembro de 1948, data do oferecimento do livro. Em parte, a dedicatória funesta se explica pelo fato de, naquele mês, Drummond ter perdido a mãe, o que o fez voltar a Itabira, numa das poucas vezes que isso ocorreu. Já era um homem de 46 anos e o consagrado poeta de A rosa do povo, mas não se pode esquecer dos versos de “Para sempre”, incluído em Lição de coisas, em 1962:

[…]

Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
– mistério profundo –
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Quanto a Otto, era naquele 1948 o noivo apaixonado de Helena Uchoa Pinheiro, com quem se casaria dois anos depois. Assinando Helena Pinheiro de Lara Resende ela seria a mãe de quatro Laras Resendes.

Otto, inteiramente “identificado à paisagem” do Rio – escrevia ele a Helio Pellegrino -, vivia enamorado da cidade para a qual se mudara em janeiro de 1946. Acreditava que a então capital do Brasil garantia mais desenvoltura a seus habitantes. Apesar disso, o seu lendário pessimismo resistia, como revela em carta a Hélio de 8 de abril de 1948:

“As manhãs aqui são fabulosíssimas, as noites quase idem, os dias, as tardes: é abril, abrilíssimo! Mas não há abril interior, não há. Dentro, no íntimo, é o lusco-fusco disfarçado, que já nem tem coragem de se afirmar, de apresentar-se como tal, sufocado nas artimanhas que a vida, afinal, acaba por ensinar a um cavalheiro tão próximo dos 26 anos.”

Qualquer resquício do enigma da dedicatória que possa permanecer se resolve plenamente no livro de Otto O príncipe e o sabiá, suculenta coletânea de perfis publicada pela Companhia das Letras em 1994, dois anos depois de sua morte. Aí se encontra “Tarde antiga e funesta profecia”, sobre Drummond. Escrito em março de 1988, quarenta anos depois do encontro que inspirou a dedicatória, o texto revela com detalhes as circunstâncias em que foi feita:

“Foi em 1948. Quando o procurei no sexto andar do Ministério da Educação, ele lá não estava. Depois de me dizer que Drummond era ?um homem esquisito, mas danado de trabalhador e organizado’, o contínuo me anunciou que o Poeta não devia demorar. Mais cinco minutos e de fato ele chegou com um embrulho de livros. […] Já não me lembro por que motivo o Poeta estava, naquela tarde, tão catastrofista. A guerra tinha acabado há três anos. O mundo trazia mais uma promessa do que ameaça. Sincero e inspirado, Drummond tinha cantado a esperança no futuro e a certeza no mundo de amanhã. Nada disso contava, porém, no nosso encontro daquele dia. A certa altura, Carlos Drummond de Andrade separa um livro entre os livros que tinha trazido da rua. Escreve nele qualquer coisa e me entrega. Era o Baudelaire, de Jean-Paul Sartre. Ainda hoje posso ler a dedicatória: ‘Ao Otto, meu companheiro de pessimismo, com um abraço fúnebre’.

Isso era no Ministério da Educação onde Drummond trabalhava no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a direção de seu amigo perfeito Rodrigo M. F. de Andrade. Na mesma sala crivada de arquivos, seu companheiro silencioso e discreto era ninguém menos do que Lúcio Costa.”

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