Antes da primeira imagem, o formato da tela já situa o espectador num lugar estreito. Não o aberto que se estende para os lados e para o horizonte, não o retângulo de grandes proporções de hoje, mas o fechado da tela do cinema feito entre o começo do sonoro e o aparecimento da televisão: um quase quadrado.
O espaço parece ainda mais apertado quando a ação começa de fato, depois de um prólogo no céu, entre montanhas cobertas de nuvens: as tripas arrancadas na autópsia não cabem de volta na barriga do cadáver, caem na mesa, espalham-se pelo chão. Nem a fome cabe na barriga do doutor, ele engole migalhas de pão trazidas pelo assistente enquanto disseca o corpo para descobrir o mistério da vida: onde se esconde a alma? Na cabeça? No coração? Ou a vida é só aquilo que se espalha já sem vida alguma sobre a mesa?
Com as tripas maiores que o cadáver num quadrado menor que uma tela de cinema, com o doutor que engole em seco e o cadáver que cospe-se no chão, o Fausto de Alexander Sokurov começa a desorientar o espectador. Temos aqui um filme que se apoia na montagem não para colocar as coisas em ordem, mas, ao contrário, para colocá-las em desordem, para desarrumar o arrumado. O que parece não fazer sentido é exatamente o que faz todo o sentido aqui: perdido na danação de Fausto é que o espectador verdadeiramente se encontra. Desorientar-se é descobrir como se move esse fluxo ou delírio que parte da lenda do homem que vendeu a alma ao diabo para sugerir que o pacto certa vez assinado com sangue hoje se assina também, ou principalmente, com dinheiro.
Ver um filme é desorientar-se, anotou Máximo Gorki (na Folha de Novgorod / Nizhegorodskii Listok, julho de 1896) no instante em que o cinema mal começava a ganhar corpo. Diante do cinematógrafo Lumière (“a impressão produzida é tão extraordinária, tão complexa, que me pergunto se serei capaz de descreve-la em todos os seus aspectos. No entanto, vou tentar dizer o principal”), ele aponta: “perdemos a noção de espaço e de tempo, esquecemos onde estamos, nos tornamos menos e menos conscientes”.
Precisamos mesmo perder a noção de espaço e de tempo para seguir um filme, acrescentou mais tarde Hugo Münsterberg, no instante em que o cinema começava a pensar a montagem (The Photoplay – A Psychological Study, Nova York, 1916). Desorientar é algo essencial ao cinema: “Vemos o soldado no campo de batalha e sua noiva em casa numa alternância de tal modo constante que nos sentimos simultaneamente aqui e lá. Não estamos na cadeira do cinema em que estamos sentados, nem em nosso lugar nem em nosso tempo. Estamos num lugar nenhum, nos dois simultâneos tempos e espaços da câmera”.
Talvez seja possível dizer que no cinema o espectador se perde para se encontrar no filme e viver (numa outra dimensão, mas viver) a cena filmada. Talvez seja possível dizer que o Fausto de Sokurov radicaliza a natural tendência a desorientar do cinema: na tela, o personagem quer saber mais (“filosofia, medicina, jurisprudência, teologia, tudo isso estudei com apaixonada dedicação e aqui estou um pobre tonto, sem saber mais do que antes”). Na tela, lá onde o espectador se perde de si mesmo, o personagem vive se perdendo, se (des?)orienta pela dúvida: no princípio, era o verbo? Era o sentido? Era a energia? Era a ação? Era Deus ou o diabo? Numa outra dimensão, mas ali mesmo, no cinema, o espectador vive essa mesma (des)orientação com o olhar. Talvez, ainda, seja possível dizer que associação do filme de Sokurov ao texto de Gorki e ao de Münsterberg seja imediata e natural.
O título da crônica sobre a primeira exibição de cinema em Nijni Novgorod, No reino das sombras, pode ser tomado como uma tradução da textura da fotografia: a imagem está quase todo o tempo encoberta por uma nuvem escura que reduz o brilho e a intensidade da cor. É como tudo se passasse sob um tempo nublado. De tal modo que o primeiro plano de Margarida surge como um raio de sol que corta as nuvens – luz intensa, colorido suave, silêncio total, o rosto em alguns instantes ligeiramente distorcido pelo movimento da câmera. O título da crônica de Gorki traduz o que o espectador vê; a primeira frase, o que o espectador sente diante do que vê: “Na noite passada estive no reino das sombras. Como é estranho sentir-se nele”. A estranheza vem do incômodo do gesto dentro do quadro – o detalhe de mãos que arrancam tripas e coração do cadáver. Vem das superposições dos diálogos. Vem, principalmente, do atropelo das imagens. A montagem em Fausto está mais perto da força de desorientação comentada por Münsterberg que da continuidade característica da narrativa das produções da indústria do audiovisual. O princípio que organiza – ou (des)organiza – a narrativa leva cada imagem a empurrar outra para fora do caminho tal como os personagens se espremem para atravessar corredores estreitos ou portas que não se abrem de todo. Cada imagem invade o espaço de outra, inesperada como a visita do usurário que surge de repente no quarto de Fausto para devolver o esquecido na loja de penhores.
Nessa “livre adaptação de Johann Wolfgang von Goethe”, o “que sempre nega”, o “que é parte da escuridão que criou a luz”, o “que sempre o mal pretende e o bem sempre cria”, não é o espírito que Fausto invoca do reino das sombras. É um usurário. Vive na cidade. No meio das gentes. O inferno é aqui, o diabo existe à nossa imagem e semelhança. Está na rua, na praça, no meio do redemoinho, seguido pela que se apresenta como sua mulher. Às vezes atende pelo nome de Mauricius. Frequenta a igreja, acredita em Deus, sobe no altar, abraça e beija os santos. É amigo do padre, faz doações para as obras da paróquia. E em sua loja de penhores empresta dinheiro à gente pobre.
O pai, que trabalha com madeira, não dá ao filho nem dinheiro nem um sentido para a vida, e por isso Fausto vai em busca do usurário para, como reza a lenda (“o diabo está onde está o dinheiro”), em busca de dinheiro e poder, conforme o acordado no primeiro contrato; e ainda como reza a lenda, para conquistar Margarida, conforme o acertado no segundo contrato, que prolonga o primeiro.
A lenda como reza o texto de Goethe, mas desmontada/remontada pela memória das guerras do século 20 e pela sensação de que existe um certo quê de Fausto na luta pelo poder e no elogio da eterna juventude da experiência contemporânea. A figura recriada por Goethe entre o final do século 18 e o começo do século 19 como imagem/síntese dos muitos possíveis (deveríamos dizer mitos possíveis?) Faustos contemporâneos. Um exame de sangue, diz o diretor: “a arte tem algo de ciência médica no instante de um exame de sangue no laboratório: não julga, não apresenta soluções, dá um diagnóstico”. Uma operação de montagem, acrescenta: não “a natureza racional da montagem”, mas a “a natureza física da montagem, sua natureza elétrica, o choque da associação de duas imagens diante de nossos olhos”: Fausto ao lado de Hitler (Moloch / Molokh, 1999), Lenin (Taurus / Telets, 2000) e de Hirohito (O sol / Solnzte, 2005). Fausto “como o capítulo final de uma tetralogia sobre a natureza do poder. O que esse personagem de ficção tem em comum com estas figuras históricas reais? Goethe, para mim, formulou o essencial de nosso tempo de sombras: o mal tende a reproduzir-se e as pessoas infelizes são perigosas.“
* Na imagem que ilustra o post: cena de Fausto, de Alexandre Sokurov.
* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles