Cenas do planeta botox

11.11.11

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Experiência 1: (Quase) sem som.  Câmera nervosa, moderna, efeitos distorcidos.  O “olho de peixe” dá a medida da vertigem. Mulheres acima dos 50 anos, na maioria. Um ou outro homem, encarapitado num banquinho. Uma lousa branca, quadro-negro contemporâneo.

Um rosto, um nome, um letreiro.

Outro nome, outro nome, outro letreiro.

Palavras aparecem, nos escritos da lousa. Corrupção. Desigualdade. Elites.

Mais rostos, mais nomes, mais letreiros.

Os rostos vão se derretendo, como os relógios de Dalí (Magritte?) e se recompondo, a partir de protuberâncias, tubérculos de rostos compostos por frutas e legumes de Arcimboldo.

De um desses rostos, um desvio abrupto, para baixo, ao falar uma palavra difícil, a mot juste. Elas lutam por expressão, vê-se nas feições contorcidas.

Mas o interdito está lá, na química e na costura que reconstroem esses rostos.

A gesticulação, enfática, tenta garantir a propriedade daquilo que fala, a veemência afirma a legitimidade.

De súbito, em meio ao derretimento surrealista e ao grotesco medieval, microcenas de fundo tomam a frente, como os padeiros assando pães no fogo do inferno ou o capeta que espeta um trio de pecadores de um daqueles panoramas apocalípticos de Hyeronimus Bosch surge uma mão que serve um bolinho de fubá, limpa o café aos pés de um escarpim.

A palestra acaba, começam a se individualizar as falas, os assuntos derivam. O olhar procura a cumplicidade da câmera a cada fragmento de sentença, como se esperasse que o gadget pudesse assentir, como a dizer, estamos mesmo no mundo do consenso.

A luz, mais intimista, faz os rostos chegarem àquelas máscaras esverdeadas, semiloucas, orquestrando suas maldades, operando suas paranoias.

Experiência 2: som na caixa, DJ. Deixo a análise do discurso para quem sabe fazê-la. De notável, apenas, o esforço de achar a palavra que não denuncie: são mulheres adestradas, assustadas pelo fato de que não estão mais entre seus pares, apavoradas porque tudo o que aprenderam se desmoronou. Nem com todo esforço que se traduz em esgares dos lábios reinchados pela química, elas serão bem-sucedidas: o sentido sempre desliza, como sabem, ah, todos.

Até que à química da aparência se soma à do bem-estar (sentem-se as vibrações dos psicotrópicos, a edição pop reforça) faz o sentido entrar francamente em colapso e o discurso, por fim, torna-se francamente delirante.

Orquestra-se uma teoria conspiratória em segundos. Pano rápido.

Experiência 3: na rede, como os pescadores, desde a madrugada. Como num mar muito piscoso, há tanto bicho abaixo da superfície que, mesmo da praia, se vê o brilho de um dorso, a agitação de uma cauda, o brilho do corpo de um mais atrevido que ousa pular. Há outros assuntos, urgentes, prementes e deprimentes, e você não joga a isca. Até que, no seu botezinho, perdido no oceano, o monstro marinho acaba caindo no seu colo. E aí não dá mais para ignorá-lo.

Análise de resultados: provisória, precária, é claro, e impressionista. É só um vídeo e, sim, não retrata nada: denuncia um olhar. O olhar de um sujeito, mesmo que coletivo, eivado de desejo, intenção, ideologia, cálculo, técnica, não necessariamente nessa ordem. Mas ao olhar se contrapõe outro olhar e daí o sentido pretendido nem sempre é o sentido apreendido. Ao longo do dia de ontem, vários nomes se deram a esses monstros das profundezas.

Vou me abster. Também o horror, às vezes, não ousa dizer seu nome.

 

* Bia Abramo é jornalista
** Na imagem da home que ilustra este post: Vertumnus, retrato de Rodolfo II (1590), de Giuseppe Arcimboldo (1527-1593)