Neste texto sobre fotografia e cidade, Maurício Lissovsky discorre sobre a relação com o meio urbano de dois dos principais fotógrafos sul-americanos da primeira metade do século XX: Martín Chambi e Horacio Coppola, ambos com exibições em cartaz nos centros culturais do IMS. No caso de Coppola, as imagens expostas são de obras do escultor Aleijadinho.
Face Andina – fotografias de Martín Chambi no acervo do Instituto Moreira Salles exibe 88 obras representativas da trajetória do fotógrafo peruano produzidas entre os anos de 1923 e 1948 em Cusco e arredores. A exposição é uma apresentação da coleção adquirida do Archivo Martín Chambi pelo IMS em 2011.
Luz, Cedro e Pedra – Esculturas de Aleijadinho fotografadas por Horacio Coppola exibe 81 imagens de Congonhas do Campo, Sabará e Ouro Preto (MG) registradas em 1945.
Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade, decisão. Não é por acaso que a cidade fotografada encontra sua expressão mais notória em um tipo de imagem que veio a chamar-se street photography, onde estes valores tornam-se aqueles que nos habituamos a esperar de uma fotografia. De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um lado, e a agilidade que requer “reflexos rápidos”, constrói-se esta “afinidade eletiva” entre fotografia e cidade que só fez crescer ao longo do século XX. A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a ruína, ou entre a aquarela e a marina.
À esquerda: Cuzco, Peru, c.1930 / Martin Chambi. À direita: Avenida Presidente Roque Sáenz Peña, Buenos Aires, Argentina, 1936 / Horacio Coppola.
Kiorikancha, Peru, 1940 / Martín Chambi.
No alvorecer do modernismo, na década de 1930, duas cidades são fotografadas por dois fotógrafos sul-americanos: Cuzco por Martín Chambi; Buenos Aires por Horacio Coppola. Apesar de ambos estarem fortemente marcados por esta afinidade entre fotografia e cidade, não pode haver maior evidência do contraste entre eles do que estas duas ruas. Em Chambi, a fotografia é um instrumento da ressurgência heróica das forças do passado incaico. Fotografia anacrônica, como esta sua famosa imagem de uma igreja em Kiorikancha, erguida sobre o templo inca que uma escavação acabara de revelar. A descoberta dos poderes transformadores da imagem será celebrada em um autorretrato magnífico, de 1923, onde Chambi contempla o negativo de outro autorretrato, feito de Arequipa, um ou dois anos antes, no refinado estúdio dos Irmãos Vargas, onde o fotógrafo havia aprendido a técnica e os truques do retrato burguês. Mas será sobre a própria paisagem das cidades andinas que Chambi irá compor seu mais incisivo autorretrato.
À esquerda: Moon Temple, Machu Picchu, Peru, 1931 / Martín Chambi. À direita: Au Tambour, Paris, 1908 / Eugéne Atget.
Muitos paralelos poderiam ser traçados entre a Cuzco de Chambi e a Paris de Atget. Em ambos, a mesma força anacrônica. Atget faz troça de si mesmo no momento em que decide ser ele próprio um antiquário, o colecionador deste repertório de formas em vias de desaparecer que é o seu arquivo de “documentos para artistas”. O fotógrafo tem a face mil vezes refratada em seu arquivo. Chambi, ao contrário, assinala na própria sombra projetada sobre o Templo da Lua a força de uma aparição, de uma sobrevivência. É por fazer de si e de sua fotografia um modo de favorecer essa ”aparição” que Chambi é peculiarmente moderno, enquanto Atget terá que ser “deformado” pelos surrealistas para tornar-se um.
Buenos Aires, 1931 / Horacio Coppola.
O lugar ocupado pela sombra nos ajuda a observar o contraste entre Chambi e Coppola de modo ainda mais interessante. Em Chambi, a sombra sinaliza para a máquina de ressurreição de uma cidade soterrada sob as pedras e debaixo da peles dos habitantes de Cuzco. Em Coppola, a sombra é o que sinaliza o poder da câmera de agregar uma qualidade nova, uma qualidade moderna, universalmente moderna, a Buenos Aires. A carroça é submetida aqui a um conhecido truque Moholyano (a inversão), cujo objetivo era demonstrar a capacidade da fotografia de engendrar uma “nova visão”.
Chambi e Coppola sintetizam – porque levam a extremos – duas formas de anacronismo características da fotografia urbana latino-americana durante grande parte do século XX. Em Chambi, a câmera projeta sobre o mundo a memória, como se o registro arcaico recobrisse a atualidade. Em Coppola, a câmara se volta para dentro de si própria, para este olhar visionário transformado pelo dispositivo técnico e que permite antever a essência de uma cidade moderna. É na tensão desses anacronismos que os imaginários urbanos sul-americanos frutificam: o anacronismo das sobrevivências, das ressurreições e dos fantasmas; e o anacronismo das “reconfigurações” do olhar moderno que renova tudo o que toca. Autorretratos de nossos sonhos e expectativas.