Quando, em 1959, João Gilberto lança Chega de saudade, a bossa nova inaugura-se como movimento e tem nele a síntese perfeita de seus elementos fundadores. Não raro é tomado como o álbum mais decisivo da música popular brasileira. Ainda no mesmo ano e no mesmo Rio de Janeiro era lançado outro disco de bossa nova que já punha em questão seus recursos e que, em termos de importância, não existiu. Trata-se de A música século XX de Jocy, da curitibana Jocy de Oliveira.
Aos 23, idade em que lançou o disco, Jocy já era uma pianista celebrada, tendo sido solista na Orquestra Sinfônica Brasileira e se apresentado na Europa e nos Estados Unidos, sempre sob a regência de seu então marido, o maestro Eleazar de Carvalho. Sua formação nada tinha a ver com música popular, e o álbum foi sua única obra nesse campo. Suas composições futuras seriam todas eruditas e de alto teor experimental.
O ostracismo do disco explica-se talvez por Jocy não frequentar o grupo dos músicos populares, ou, mais possivelmente, pela incompreensão causada por sua música. Fato é que não gerou efeitos entre outros compositores. Nas mais de 400 páginas de Chega de saudade, livro em que Ruy Castro reconstitui a história da bossa nova, não há menção a seu nome. Um dos poucos a reconhecer o disco favoravelmente foi o escritor modernista Menotti del Picchia, que lhe escreveu o texto de apresentação na contracapa, saudando a novidade que reconhecia na artista.
A música século XX se posiciona de modo ambíguo em relação à bossa: ora se conforma a ela, ora a toma como um estilo a ser revisto, parodiado e deformado.
A conformidade começa pela capa, que assume o violão, instrumento que os sambistas modernos haviam recentemente resgatado da condição marginal. Também a maneira de tocá-lo é inconfundivelmente joão-gilbertiana. Além disso, Jocy, autora de todas as canções, demonstra habilidade no trato da harmonia e da dissonância, o que, se já era uma prática no samba, a bossa nova levaria a um nível inaudito de sofisticação.
A compositora, que nunca seria intérprete de suas peças eruditas e experimentais para voz, conta que, por não se reconhecer como cantora, só assumiu o canto no disco porque nem ela nem a gravadora dispuseram de cantor ou cantora adequados. Sua voz é de projeção modesta e opera sobretudo nas zonas mais graves de sua extensão vocal, o que, longe de ser um problema, faz do disco um experimento bossa-novista ainda mais autêntico.
Ao mesmo tempo Jocy superpovoa sua música de elementos que desestabilizam e deformam a bossa. O mais evidente são as letras. Carlos Lyra escreve em “Eu e a bossa”: “Até o início dos anos 60, a chamada Bossa Nova caracterizou-se pela busca da forma na melodia, na letra, na harmonia, no ritmo e na interpretação. O conteúdo era o mais lírico e comportado possível. Poderíamos dizer que era a fase do amor, do sorriso e da flor. O correr dos anos 60 foi, no entanto, indicando um novo caminho. Tópicos como nacionalismo, realidade brasileira, raízes, reforma agrária, justiça social e consciência política exerceram o papel de antítese em relação à temática anterior.”
É precisamente o que Lyra chama de “contéudo” que o recorte temático e a abordagem lírica de Jocy sabotam ainda antes dos anos 1960. Não há sol; a flor padece e seca; a cidade é violenta e desolada. Em quase todas as canções há alguma menção à morte.
A frenética “Sofia suicidou-se” abre o disco anunciando ao modo de um jornal sensacionalista o suicídio sem explicação de uma moça rica e bela, figura que à bossa daquele momento apenas serviria de musa feliz e solar. Pelas frestas desta e da personagem de “Frida”, outra canção que também traz à cena uma vítima da impiedade urbana, avisto sinais de “Lindoneia”, a personagem-canção que Caetano e Gil criariam em 1967 a partir de uma serigrafia de Rubens Gerchman que tematiza o subúrbio e a solidão anônima.
Ainda que a intenção parodística pareça ostensiva, as canções estendem seu valor para além da piada. A habilidade lírica de Jocy se dá a ver em “Um assalto no Morumbi”, talvez o momento mais alto do disco, em que se reduz a descrição do furto a uma síntese expressiva de imagens plásticas.
Um assalto no Morumbi
— Pega, pega, pega ladrão!
Era um palácio colonial
Perdido na sombra
E a sombra se escondeu no Morumbi
O candelabro de prata chorou
Porque o ladrão separou-o da vela
E a vela se apagou no Morumbi
Se aqui uma vela se apaga, na sequência outro fogo arde com mais força em “Incêndio”. E é no morro que se ouve “um grito de dor/ do pobre que perde a vida/ um grito na noite/ do pobre que perde a casa”.
É a partir da canção de Sérgio Ricardo de 1960, “Zelão”, que se costuma situar a tendência ao engajamento político da bossa nova, que culminaria no célebre espetáculo Opinião, de 1964. Ainda que a luta de classes não seja abordada por Jocy com a mesma contundência daqueles que o fariam de modo programático, o fato é que por meio dela a bossa nova esteve — sim — de frente para o morro já em 1959.
Ainda em “Incêndio”, são flagrantes as marcas da formação erudita da compositora. Flauta e violão entram em sincronia e, juntos, vão delineando um percurso independente da melodia, criando um efeito de rarefação sonora e aleatoriedade incomum na música popular de então.
“Brasília século I”, ainda antes de a nova capital ser inaugurada, em vez de partir de sua novidade arquitetônico-urbanística, que inspirava ideais progressistas e modernizadores, põe em cena a massa trabalhadora que ergueu a cidade: “Brasília, o teu nome é candango”.
É flagrante nessas canções o desejo de comentar o presente. Cabe observar que a vinculação ao fato e a constatação desembaraçada do nosso subdesenvolvimento se tornariam culminantes no tropicalismo. Aliás, Jocy antecipa, aqui e ali, certos procedimentos que só se consagrariam na canção com Caetano e amigos: a colagem, o corte abrupto, a livre inserção da fala, a paródia e certo gosto pelo nonsense. Em “Um crime” — faixa de apenas quarenta e cinco segundos — todos esses elementos se concentram, numa operação de corte e montagem que semelha a linguagem do cinema.
O disco, no entanto, perde vigor em “A lenda da chuva”, “O sorriso da praia”, “Mar de sal”, “A morte do violão” e “E a chuva nasceu”, canções que formam uma série narrativa na qual o mar, a praia, o violão e o luar são personagens míticos. Apesar da intenção parodística de criar uma história fúnebre usando as mesmas imagens que aquela primeira bossa nova viciaria, a série redunda na mesma doçura que parece tentar subverter.
Na esteira dos sambas modernos que tematizam a própria forma ou método composicional, de que são exemplos “Bim Bom” (João Gilberto), “Desafinado” e “Samba de uma nota só”(Tom Jobim e Newton Mendonça), Jocy encerra o álbum com seu “Samba gregoriano”, propondo uma conciliação da pureza do canto gregoriano com o ritmo da macumba. Afinal, “tudo é fé “, justifica. Tal sincretismo, religioso e musical, afirmado na leveza e na simplicidade da composição, remete-nos sem erro ao futuro método de Jorge Ben Jor, que poderia ter sido o autor dessa canção.
Para gravar o disco, Jocy relata que levava suas composições transcritas em partituras ao estúdio da gravadora Copacabana. Depois de duas semanas a sair de casa à meia-noite e voltar de manhã sem resultados, Eleazar de Carvalho decidiu visitar o estúdio para entender o que acontecia. Quando entendeu que os músicos (entre os quais, o virtuoso flautista Altamiro Carrilho, também responsável pela produção musical), embora excelentes, não se mostravam aptos a trabalhar com aquela música estranha, o maestro decidiu reger e, em uma noite, o disco foi gravado. Essa pressa traduz-se em uma charmosa atmosfera lo-fi. Apesar do hábil trabalho, o nome do regente foi suprimido do disco em favor da boa reputação.
Ao comentar o escasso reconhecimento de sua obra, Jocy aponta o desprestígio que enfrentavam e ainda enfrentam as compositoras mulheres, em quem, diz, só se reconhece a utilidade de musa ou de intérprete. A esse propósito, ela conta em seu livro Diálogo com cartas (SESI, 2014), recente vencedor do prêmio Jabuti, que sua peça Apague meu spotlight, de 1961, “representou a primeira apresentação de música eletrônica no Brasil”, mas que foi “ignorada até hoje por grande parte dos compositores ‘eletroacústicos’ brasileiros”. Segue dizendo que é mais comum encontrar referências no exterior de sua participação entre os pioneiros de multimídia nos Estados Unidos do que nos “compêndios de música contemporânea brasileira assinados pela inteligência acadêmica masculina do país”.
A década de 1960 foi decisiva em nossa música. É tentador imaginar a carreira que Jocy teria construído em diálogo com os músicos dessa geração se houvesse prosseguido com a canção popular.
Sobrou-nos, de qualquer modo, um disco. É preciso propor que ele seja reconhecido não só pelo seu diálogo com a bossa nova ou pelo seu caráter de exceção e curiosidade histórica, mas como um álbum de música popular pleno.