“Hoje em dia, não é suficiente ter um trabalho de arte maravilhoso, também não é suficiente ser parte de um mercado. Porque, em minha opinião, a instituição de arte, a arte contemporânea em geral, é um dos últimos campos nos quais você ainda tem liberdade de expressão. Eu acho isso uma responsabilidade. O engajamento pode ser social, político, ou qualquer outra coisa, mas você tem que contribuir – com seu conhecimento, poder, sensibilidade – com uma sociedade melhor. Isso soa patético, mas é assim que é.”
Desenho de Dan Perjovschi
A declaração transcrita aqui foi retirada do site do artista romeno Dan Perjovschi, que integra a 31a Bienal Internacional de Arte de São Paulo com um trabalho feito diretamente na parede de vidro em frente à marquise do Parque do Ibirapuera, ao lado da entrada principal da exposição.
Situado a meio caminho entre fora e dentro do Pavilhão, o trabalho de Perjovschi é uma coleção de desenhos e palavras que se relacionam com o que o artista viu, ouviu e experimentou em São Paulo. São inscrições simples, porém irônicas e críticas, como uma série de linhas com padrões abstratos que, num segundo momento, se revelam representações de arames farpados, cacos de vidro e grades que abundam em São Paulo e separam o espaço público do privado. Os temas variam das telenovelas aos selfies, da violência ao skate, das ideias de liberdade e futuro a cenas de enfrentamento de manifestantes com a polícia.
O trabalho do artista romeno guarda algo das charges jornalísticas, dos grafites de São Paulo e mesmo da insubordinação dos desenhos de portas de banheiro. O forte engajamento de sua produção se revela com o compromisso em apreender os conflitos e contradições do presente e, ainda, mostra a tônica da 31a Bienal e das polêmicas que ela suscita.
O patético
A arte precisa contribuir para uma sociedade melhor. E afirmar isso, ao menos nas palavras de Perjovschi, não deixa de ser patético, porque coloca para a arte a necessidade de revelar o sofrimento humano, de jogar luzes sobre as misérias da vida. Como categoria estética, pode-se dizer que o patético expõe a fragilidade do homem frente às irresistíveis forças da natureza, do destino, das amarras sociais, dos valores morais e revela uma vontade humana em absoluta independência em relação às forças que deveriam formatá-la.
Nesse sentido, há, sem dúvida, algo de patético nos trabalhos selecionados para esta edição da Bienal. O trabalho do brasileiro Armando Queiroz com Almires Martins e Marcelo Rodrigues, “Ymá Nhandehetama” [antigamente fomos muitos], de 2009, pode ser considerado um deles. É um filme escuro, introspectivo, no qual o rosto de Almires Martins, indígena guarani, é iluminado com uma luz azul, e que ele fala da situação de seu povo e dos índios brasileiros em geral. Tocante, comovente e triste, as palavras de Almires falam de um país em que o desrespeito cultural, o descaso e o massacre à população indígena são constantes.
“Ymá Nhandehetama”, de Armando Queiroz com Almires Martins e Marcelo Rodrigues
Menos melancólico e mais indignado é o depoimento de Débora Maria da Silva no trabalho “Apelo”, de 2014, que ela assina com a artista Clara Ianni. Débora teve seu filho assassinado em 2006, em uma chacina na Baixada Santista. O crime nunca foi devidamente esclarecido, e há fortes suspeitas de que a polícia esteja envolvida. Débora integra o movimento Mães de Maio, grupo de luta pela investigação de crimes como esses. No vídeo, ela aparece caminhando no cemitério de Perus (cemitério Dom Bosco), em São Paulo, criado durante a ditadura militar, em 1971. Além da paisagem desoladora, do depoimento cheio de dor e de indignação, o vídeo mostra o enterro de duas pessoas, sem qualquer ritual ou homenagem póstuma, com caixões que, lançados às pressas nas covas, quase se desmancham e são rapidamente cobertos com terra por uma equipe do serviço funerário.
“Apelo”, de Débora Maria da Silva e Clara Ianni
Ainda sobre esse sentimento de comoção, indignação e injustiça que alguns dos trabalhos expostos na Bienal despertam, há “Contando as estrelas” (2014), da israelense Nurit Sharett. A artista viajou pelo Brasil colhendo depoimentos de membros de famílias de origem judaica que foram forçadas a se converter ao catolicismo no século XV – os anussim. A violência da Inquisição portuguesa está na origem desses relatos e marca até hoje, de várias formas, a vida dessas pessoas.
Embora relacionados a assuntos diferentes, esses três trabalhos têm em comum a característica de dar voz àqueles que foram vítimas de violência e sofrem suas consequências. A forma depoimento, escolhida por esses artistas (e outros que também integram esta edição da Bienal), surge com força no panorama traçado pelos curadores. O artista assume a função de recolher relatos que, de outra forma, dificilmente viriam a público. São relatos que dão voz a grupos que permanecem excluídos do debate e que, nos trabalhos desses artistas, podem falar, da forma que lhes convêm, sem a mediação problemática da grande mídia, sem as formalidades capciosas das normas jurídicas. Ao mesmo tempo, a pergunta sobre o que distingue esses trabalhos de uma investigação sociológica, o que os insere inequivocamente no campo das artes, está posta, e o visitante da Bienal é instigado a pensar sobre ela.
Uma função social para arte hoje?
Em 1949, o filósofo alemão Theodor Adorno perguntou se ainda era possível fazer poesia depois de Auschwitz. Nesta frase, amplamente lembrada ainda hoje, o que estava em jogo era a perda do sentido humano que as ações nazistas traziam e que poderiam reduzir a nada o sentido poético das artes. A pergunta, hoje reposta pela 31a Bienal, parece ser: como fazer arte durante um período em que os direitos humanos mais básicos permanecem sistematicamente desrespeitados? A arte de hoje, ou ao menos parte dela, como a que vemos na 31a Bienal de São Paulo, parece se confrontar com essa pergunta e encontrar para ela uma resposta ética.
“Como … coisas que não existem”, o título da mostra, deixa para o público completar o verbo escondido pelas reticências. Como (falar de) coisas que não existem? Como (mostrar) coisas que não existem? Como (se dirigir a) coisas que não existem? Como fazer arte hoje, se a realidade social (“as coisas que existem”), ao menos no Brasil, ponto de partida das investigações curatoriais desta Bienal, são tão pouco poéticas?
Pode-se falar das coisas que, embora “não existam” politicamente, socialmente, juridicamente, existem na prática cotidiana: as chacinas, a discriminação racial, sexual e religiosa, a ineficiência do sistema carcerário, o confinamento do “estranho” (o louco, o ativista). Ou pode-se escrever outra história, que traga em si um horizonte diverso. Uma história em outras bases, com outras categorias, com outros métodos, uma narrativa que se coloque de pé ao incorporar conceitos psicanalíticos, estéticos, étnicos, entre outros.
Enquanto os trabalhos comentados anteriormente dão voz a discursos que (supostamente) não existem, outra parte dos trabalhos desta Bienal parece querer construir uma história que está por ser feita. É o caso de “Linha da vida/Museu Travesti do Peru”, de Giuseppe Campuzano. O trabalho é uma linha do tempo na qual a história é contada por meio de personagens andróginos, travestis e mestiços. A figura do travesti é o centro da história, e suas derivações e variações ao longo da narrativa são protagonistas.
“Museo Travestí del Perú”, de Giuseppe Campuzano
Este é, também, o caso de “A Escola Moderna”, de Pedro G. Romero. O trabalho é parte do “Arquivo F.X.”, obra a que o artista espanhol se dedica há quase 20 anos. A Escola Moderna, fundada por Francesc Ferrer em Barcelona e trazida para o Brasil pelo avô do artista Hélio Oiticica, pressupunha um ensino mais livre, sem cargas religiosas e morais, longe do “adestramento” das escolas tradicionais, e baseada em critérios científicos. Com o distanciamento histórico, no entanto, pode-se encontrar nas experiências das Escolas Modernas outra questão: a onipotência do pensamento racional e científico que, hoje, já começa a ser visto como outro paradigma igualmente problemático. A montagem do trabalho “A Escola Moderna” na Bienal, porém, não parece dar a ver todo esse complexo raciocínio que orienta a construção do arquivo e a pesquisa do artista. Embora tenha sido destinado na mostra um espaço grande para a instalação dessa parte do arquivo, é difícil para o público reter o que foi a escola, suas características e os limites dessa experiência.
“A escola moderna”, de Pedro G. Romero
O problema de como mostrar pesquisas em processos, arquivos, documentos das mais variadas procedências (fotos, vídeos, matérias de jornal, livros, muitas vezes em outra língua que não o português) é enfrentado por inúmeros artistas desta Bienal. Muitas vezes, parecemos estar diante de ateliês de artistas, que foram transportados para a mostra como se, entre a elaboração do trabalho e sua apresentação pública, não houvesse distinção. Este é o caso de parte da obra “Os insurgentes incidentais” (dividida em dois espaços, ou “capítulos”, como os artistas chamam), de 2012, dos palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme. Nela, somos convidados a contemplar – não se deve manipular nada – um ambiente repleto de desenhos, livros, excertos de textos e fotografias por meio das quais dificilmente depreendemos qual a pesquisa em curso.
“Os insurgentes acidentais”, de Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme
A apreensão que podemos ter de uma Bienal é sempre incompleta. Não importa quantas visitas sejam feitas, nem quanto tempo elas durem: há sempre algo que fica de fora. Um trabalho que estava em manutenção, uma palestra a qual não comparecemos, uma performance que já aconteceu e não se repetirá. A visão de uma grande mostra de arte é sempre panorâmica e não detida parcimoniosamente nesta ao naquela poética.
Nesta visão, condenada a um caráter mais genérico do que poderia ser desejável, o que esta Bienal nos mostra são artistas empenhados em pôr em circulação discursos não hegemônicos, em dar voz àqueles que não têm voz no cotidiano e esforçando-se para construção de outra narrativa histórica, com base em outra ética: outros princípios, outros valores e outros desejos, que continuam sem lugar de expressão. Ao assumir para si a gigantesca tarefa de reescrever a história, a arte se vê às voltas com materiais como documentos, registros, depoimentos, análises e discursos cuja formalização aparece ainda, em muitos casos, como um desafio. Somos confrontados com as mais diversas soluções de apresentação para arquivos ou pesquisas em construção que nem sempre logram êxito no momento em que se mostram publicamente. Não falo aqui de um problema de museografia. Talvez, em alguns casos, como nos de artistas já falecidos, a questão venha a recair sobre curadores, mas são exceções. Não se trata do problema de lidar com o espaço expositivo, mas, antes, de uma questão interna aos trabalhos, pertinente aos próprios artistas, sobre a formalização das obras.
Que não se confunda essa reivindicação com um formalismo estéril. Há exemplos nesta mesma exposição de como uma narrativa poética pode ser, ao mesmo tempo, política e potente. O vídeo de Yuri Firmeza “Nada é”, que tem como ponto de partida a cidade de Alcântara, no Maranhão, é um exemplo disso. Sons mecânicos e músicas populares, imagens de paisagens enigmáticas em sequências longas e retratos de pessoas posando para a câmera, passagens abstratas e mais narrativas conformam a ideia de um Brasil onde convivem tradições antigas e tecnologias novas, solidão e festa coletiva, ruínas do passado e construções para o futuro. O lançamento de um foguete que dispara rumo ao desconhecido indica uma temporalidade acelerada em sentido único. A encenação, sempre repetida, ano após ano, de rituais em festas religiosas, indicam um tempo cíclico, um passado que retorna ao presente. No vídeo de Firmeza a história se constrói mediante o entrecruzamento dessas duas temporalidades distintas.
A arte contemporânea parece estar imbuída da responsabilidade de construir uma sociedade melhor. Revisita a história e busca reescrevê-la fora da temporalidade linear contida na noção de progresso, expõe o drama daqueles que nunca antes foram ouvidos, critica experiências passadas e revela pressupostos ideológicos da história “oficial” que permaneciam escondidos. Essa Bienal tem o grande mérito de trazer com força esse grande movimento em curso na arte de hoje em direção à história. Contudo, inevitavelmente, ela também expõe os impasses dessa produção: um excesso de conteúdos discursivos que demandam ainda uma formalização no campo da estética.