Você já viu esse filme, com diferentes roupagens, elencos e cenários: um homem e uma mulher, que de início se antipatizam e hostilizam, passam aos poucos à compreensão mútua e finalmente ao amor. O protótipo do gênero talvez seja Aconteceu naquela noite (1934), de Frank Capra, mas cineastas como Hawks, Cukor, Wilder e Woody Allen também embaralharam e reembaralharam as cartas desse jogo com engenho e arte.
Pois bem: Um amor de vizinha, de Rob Reiner, é o mais recente rebento da linhagem. Melhor seria dizer: é o atestado do seu esgotamento. O fundo do poço. Se Melhor é impossível(1997), do mesmo roteirista (Mark Andrus), ainda era uma diluição aceitável do gênero, o novo filme é a diluição da diluição, em que não sobrou uma única ideia original, um único momento de brilho.
Vamos a uma sinopse, sem preocupação de evitar spoilers, pois tudo é previsível desde os créditos iniciais. O viúvo sexagenário Oren Little (Michael Douglas), solitário e rabugento, recebe a incumbência de cuidar da filhinha de dez anos de seu filho desajustado quando este vai passar um tempo na cadeia. A princípio Oren rejeita a menina e esta acaba sendo acolhido pela vizinha Leah (Diane Keaton), igualmente sessentona e viúva, que tenta tardiamente uma carreira de cantora de bar.
Piloto automático
Mas calma: como que por obra de um aplicativo de computador, todos os atritos se amaciam, todos os conflitos se convertem em harmonia: Oren revela-se um avô carinhoso, o filho desgarrado na verdade era um homem íntegro acusado injustamente, as farpas entre os dois veteranos vizinhos tornam-se beijos e carícias. De quebra, Oren vende sua casa por uma fortuna a um jovem casal sorridente e Leah desponta para o sucesso como cantora.
Claro que o final feliz faz parte do gênero, mas aqui é tudo tão frouxo e sem inspiração que a pergunta que fica no ar ao fim da sessão é: por que esse filme foi feito? Para cumprir uma cota de comédias dramáticas com mensagem edificante e atores famosos usando belas locações no litoral da Nova Inglaterra? As piadas são gastas, a decupagem é um enfadonho campo/contracampo, os atores parecem agir no piloto automático.
Uma única cena interessante, pelo comentário sociocultural embutido nela: Oren, tentando vender sua casa a um jovem afro-americano endinheirado, coloca a foto de outro negro elegante no porta-retratos casualmente colocado sobre uma cômoda. Durante a visita do potencial comprador, faz uma brincadeira sobre Sammy Davis Jr., mas o rapaz ignora quem seja e diz que pensou que a casa pertencesse a Common. “Quem?”, pergunta Oren, revelando não saber que a foto no porta-retratos era do rapper e ator Common.
Ideias como essa, que pululam nos melhores filmes dessa vertente, pontuando e apimentando o entrecho romântico, aqui são soterradas pelo lugar-comum e pela indolência criativa.
O pequeno fugitivo
Em contraste com a flacidez de Um amor de vizinha, tudo é frescor e encantamento em O pequeno fugitivo (1953), de Ray Ashley, Morris Engel e Ruth Orkin, que está em cartaz em São Paulo e logo deve seguir para outras cidades brasileiras. Narra-se ali, em precisas imagens em preto e branco, um dia e meio na vida de Joey (Richie Andrusco), um menino que foge de casa para Coney Island ao pensar erradamente que matou por acidente o irmão mais velho.
Durante as horas que passa na ilha, trafegando entre banhistas que abarrotam a praia e visitantes do grande parque de diversões local, Joey experimenta o terror e a maravilha de toda uma vida: a necessidade de ganhar o sustento, o medo de ser preso, a vertiginosa liberdade, o espanto das descobertas. Sem descolar em nenhum momento do personagem, o filme faz com que o espectador também viva, ele próprio, toda essa gama de sensações e percepções.
Trata-se de um filme único em vários sentidos. Seus realizadores – o escritor Ray Ashley e os fotógrafos Morris Engel e Ruth Orkin – praticamente não seguiram carreira no cinema. O filme não teve herdeiros diretos, embora tenha sido admirado por cineastas independentes de várias gerações, de John Cassavettes a Jim Jarmusch, passando por Martin Scorsese. Um “ponto fora da curva” no cinema americano, com uma pegada quase neorrealista e uma saudável autonomia com relação às convenções narrativas hollywoodianas. Em suma, um filme que não se deve perder.