Voto, assunto pessoal

Correspondência

12.11.12

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Querido Ronaldo,

Não posso deixar de comentar com você a bela resenha que o Moacir Amâncio escreveu no último Sabático sobre o Dardará, do O.C. Louzada Filho. Lembra que eu falei do livro com você? Confira a resenha. Por coincidência acabei de ler e analisar com os alunos “A propósito do retrato de Eliot”, do Moacir, poema enviesado e melancólico, além de crítico, na linha do Baudelaire e do “The raven”, de Poe.

Acho que fiquei intrigada com a literatura – até hoje- quando li em criança – não havia televisão – “A missa do galo”, do Machado e, na tradução do mesmo Machado, “The raven”, do Poe, que eu achava que fosse “O urubu”, embora estive escrito “o corvo”. Claro. O que seria “corvo” naquelas lonjuras do interior? Não entendi bem nem o conto, nem o poema, portanto não consegui esquecê-los, vinham pontuais como a luz do dia.

Mas mudando de assunto, você terminou sua carta anterior perguntando como foi o debate Obama/Romney na Universidade de Berkeley. Pois bem, não sei. Pode ser que tenha havido encontros e discussões específicas entre os muros da universidade – fora, como você sabe, houve os debates na televisão e o apoio explícito dos jornais a seus candidatos, com a afirmação, após a vitória, de que Obama obtivera o voto das mulheres e dos hispanos, mas não dos brancos. “Mesmo assim dos brancos acima de 50 anos, os mais conservadores”, comentou uma amiga brasileira, que torceu aflitamente a favor do vencedor, afirmando que seria “uma tragédia” a vitória de Romney. Não sei se seria uma tragédia nova, mas simpatizo com a inclinação política dela, neste ponto específico.

Por outro lado, uma amiga trotskista, catalã, mas vivendo nos Estados Unidos, me provou por A+B que os dois não têm grande diferença. Os argumentos eram inteligentes, mas um pouco duros, isto é, lógicos demais. Você sabe, os argumentos são lógicos na medida em que não se ajustam perfeitamente à realidade, que tem mais desdobramentos de equilíbrio/desequilíbrio do que sonha nossa vã filosofia.

Depois do primeiro debate, estando eu num jantar, comentou-se que Obama não tinha “ido bem”. Que estava ausente demais, parecia indiferente etc. O papo rolou sem maior interesse. A certa altura resolvi dizer que o desempenho de Obama certamente tinha sido por orientação de seu diretor de cena, ninguém pode acreditar que um candidato hoje suba ao palco ingenuamente, confiando na própria espontaneidade ou na paixão política, se é que esta existe mesmo, em seu sentido etimológico.

Houve um silêncio e mudaram de assunto. Talvez tivessem razão, não sou norte-americana, não tinha nada de meter a colher. Podiam pensar que eu estava defendendo o candidato e a declaração a favor ou contra é considerado de mau gosto, má educação, intromissão. Na sociedade civil não explicitamente engajada em trabalho político, esse papo só deve ser aceitável entre amigos muito íntimos. Aliás não só nos Estados Unidos. Uma vez na Espanha perguntei: “em quem você vai votar?” A pessoa me ensinou, um pouco pálida: “isso é um assunto pessoal”.

Aconteceu o mesmo numa aula de pós. Interessada na resposta que uma garota dera a uma questão específica, perguntei: você é judia? Houve um silêncio pesado. A sorte foi que a garota deu uma piscadinha pra mim, com um olho bem risonho.

Contando isso a uma amiga do departamento, ela riu: ah,isso é impossível aqui, ninguém pode fazer uma pergunta direta, não é politicamente correto. Se está preocupada, é melhor desfazer a gaffe, dizer que não sabia. Mas não é grave, eles devem ter tomado um susto.

Resolvi obedecer e no dia seguinte lhes disse: olhem, desculpem, não sabia que há palavras impossíveis de poemas, não, não, estou confusa, impossíveis de conversa. Na minha família, por exemplo, tem negros, italianos, portugueses, caboclos, judeus, isto é, cristãos-novos, conforme me explicou uma amiga judia. Mas na minha família ninguém dá bola pra isso. Só comentamos que os caboclos são os mais bonitos, cor de chocolate, embora haja também alguns que acham que os brancos (brancos?) são os tais.

Voltando ao assunto: para você ter uma ideia, no dia da eleição, cheguei a perguntar na universidade se era mesmo dia de eleição, tal a placidez e o silêncio sobre o assunto. A vida e as aulas continuavam no mesmo ritmo. Até hoje não sei se meus alunos votaram ou não e em quem. Sei do voto de alguns amigos, não que tivessem comentado explicitamente, mas por alusões laterais.

Códigos, códigos.

O que me surpreende é que este país esteja em guerra há dez anos, com exércitos compostos 70% de mercenários e 30% de pobres, e isso também não seja assunto.

Seu amigo, que exige o lado noturno das correspondências – aliás acho que ele tem razão – não deve estar gostando nada, isso não passa de uma crônica vaga, que se quebra e vai se emendando com outra crônica. Trata-se do gênero epistolar online, onde fui me meter, Ronaldo?

Escrevi para você na falsa carta passada que iria a Brown fazer uma conferência, e na verdade fui. Apesar dos pesares – a distância e o anúncio do tal “hurricane” – voltei em cima da hora, no dia seguinte não seria mais possível – apesar disso tudo, foi uma das ocasiões mais felizes da minha vinda aqui: alguns ex-alunos da Unicamp, fazendo pós-doutoramento por perto, apareceram de surpresa. E uma amiga venezuelana, a Márgara Russotto, também apareceu. Ela deu aulas na Unicamp e está agora em Massachusetts.

Bom, foi uma festa ver todos aqueles rostos conhecidos. Fiquei logo calma. Além disso, conheci melhor o Nelson Vieira, americano apesar do nome, que tem ensaios interessantes sobre literatura brasileira e com quem só me encontrara uma vez em casa da Berta Waldman.

Agora a parte engraçada de Brown, não que seja exclusividade dela, existe tanto em Itaguay quanto em Paris: la burocracia, la burocracia. O pagamento. Sei que vão pagar, o Marcelo Lotufo está a toda a hora indo à secretaria, mas olhe o que aconteceu: me convidaram, disseram que eu fosse, que comprasse as passagens, que pagariam tudo, mais o hotel e a palestra, e que tentariam mesmo pagar na hora e em dinheiro. Estranhei, pagar na hora e em dinheiro? Qualquer um sabe que pagar não é um esporte simples no capitalismo dito anal, pois tem prisão ventral do alheio capital. Assim me explicaram há muitos anos.

Bom, eu não disse? Não conseguiram. Se esforçaram, mas não conseguiram. Explicaram que tinha sido um engano, não era possível, era mesmo contra todas as hipóteses e possibilidades, onde já se viu?

– Mas vocês mesmo disseram. ..

– NÃO e NÃO.

Teria de ser, isso sim, em cheque, depositado em meu banco em Berkeley, depois que eu tivesse assinado uma série de papéis.

Tudo bem. (Viajo sempre com uma bolsa de papéis oficiais e um caderninho de senhas secretíssimas.)

Uma vez, depois de um jantar, todo o mundo ia pagar com o cartão, estávamos atrasados para um teatro, eu disse que ia ao banheiro e que o meu pin (senha de banco) era…

Todos se levantaram ao mesmo tempo, os guardanapos caíram.

– Não, não, NÃO, não diga o número de seu pin!

Voltando a Brown, assinei todos os papéis que me apresentaram, à vista da secretária, uma senhora portuguesa.

Todos os papéis? Ledo engano. Faltou um.

Marcelo me telefonou ontem, desesperado. Como faltou?, perguntei. E ele: Faltando, ué, faltando. Você nunca ouviu falar em Kafka, o escritor mais realista do mundo?

Já, sim.

Enviaram por e-mail uma folha complicadíssima, transcendental, com milhões de quadradinhos e pontinhos que eu tive de preencher, com a ajuda da competentíssima secretária de Berkeley, pois eu não entendia nem a metade – e assinar e remeter ontem, urgente, 18 dólares.

Espero que o cheque apareça voando até 1º de dezembro, quando bato as asas para o Brasil.

Mudando de assunto, Ronaldo, que história é essa de jurado C., que você vive citando e não explica? Alguma brincadeira?

Até logo. Já estou com muitas saudades do solo pátrio, pensando na definição do Tom Jobim, logo depois de afirmar que Nova York é uma cidade para se admirar de maca. Sabe qual é a definição? Se não sabe, depois eu conto.

A sorte foi que o Francisco e a Luiza vieram passar uma semana aqui comigo. E fomos ver o Chucho Valdés. Extraordinário. Aos 70 anos, acho que o cubano é a maior figura do jazz contemporâneo, haja vista os oito Grammys que ganhou; três deles latinos.

Até breve,

Vilma

* Na imagem que ilustra a home desse post: infográfico da eleição norte-americana.

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