Assistindo a O que eu mais desejo, do japonês Hirokazu Kore-eda, me dei conta do óbvio: filmar crianças não deve ser nada fácil. Narrar um filme todo sem abandonar o ponto de vista infantil é um tour de force que poucos realizam a contento. Alguns exemplos extraordinários me vêm a mente.
Em Bom dia (1959), de Yasijiro Ozu, dois irmãos fazem greve de silêncio para pressionar seus pais a comprar um televisor.
O pequeno fugitivo (1953), de Ray Ashley, Morris Engel e Ruth Orkin, descreve a saga de um menino de seis anos que passa um dia e uma noite se virando sozinho no grande parque de diversões de Coney Island. Aqui, uma sequência especialmente bela desse filme único, tido como pioneiro do cinema independente norte-americano:
A guerra dos botões (Yves Robert, 1962) marcou época ao mostrar as batalhas entre garotos de dois vilarejos franceses rivais.
Isso sem falar de clássicos como Los olvidados (Buñuel, 1950), Os incompreendidos (Truffaut, 1958) e Pixote (Babenco, 1980), cujos protagonistas, a bem da verdade, são mais adolescentes do que propriamente crianças.
Realismo e fantasia
O que eu mais desejo não está à altura dessas obras, é preciso que se diga. Talvez nem seja um grande filme. Mas é, no mínimo, encantador. Seu segredo, a meu ver, reside no fato de partir de um realismo banal para ingressar pouco a pouco no terreno da fantasia, da fábula, quase do conto de fadas – e depois retornar ao cotidiano, mas em novas bases, com um aprendizado incorporado. É, de certo modo, um romance de iniciação.
A narrativa é centrada – ou melhor, bifurcada – em dois pequenos irmãos, Koichi (Koki Maeda) e Ryunosuke (Ohshirô Maeda), que vivem em cidades diferentes desde que seus pais se separaram, meses atrás. O mais velho, Koichi, de doze anos, ouve alguém dizer que quando dois trens-bala se cruzam em alta velocidade acontece um milagre, e quem presencia o evento tem seu desejo mais íntimo atendido. Ora, o que ele mais deseja é ver a família reunida.
Não vou entrar em detalhes do entrecho para não estragar o prazer de quem ainda não viu o filme. Basta dizer que os dois irmãos decidem ir ao local da ferrovia em que tal cruzamento de trens acontece. Junto com eles vão outras crianças, cada uma com seu desejo supremo: uma quer ser atriz, outro quer ressuscitar o cãozinho que acabou de morrer, outro quer casar com a professora.
Leveza quase onírica
O bonito é o seguinte: enquanto estão separadas, cada uma em sua casa, as crianças se sujeitam às injunções práticas, prosaicas, do mundo dos adultos. Ao se unirem, elas parecem dobrar as quinas duras da realidade e construir um espaço novo, pleno de expectativas e possibilidades.
Se há algo de frouxo e disperso na narrativa de Kore-Eda, sobretudo na primeira parte, isso é compensado pela leveza quase onírica com que ele conduz a segunda metade, abrindo mão da verossimilhança e mergulhando no reino da fantasia infantil.
Alguns achados são particularmente felizes. A certa altura, os meninos e meninas escrevem seus desejos num pano branco, cada um com um pincel atômico de uma cor. Quando vão ao local do cruzamento dos trens, desfraldam o pano, convertido numa multicolorida bandeira da esperança. Realizem-se ou não os desejos, essa é uma imagem que ficará.
http://www.youtube.com/watch?v=-HAKKq-LHic
Na imagem que ilustra o post: cena do filme O que eu mais desejo.