A estranha vida das cidades

Fotografia

23.09.14

A exposição São Paulo, fora de alcance, com fotografias de Mauro Restiffe, ficou em cartaz no IMS-RJ de 8 de junho a 28 de setembro de 2014. O texto abaixo integra o livro da mostra.

Em janeiro de 2012, a Polícia Militar invadiu o bairro da Luz, no centro de São Paulo, para expulsar traficantes e usuários de drogas que se concentravam na região conhecida como Cracolândia. Paus, pedras, cassetetes e cavalos atulharam o noticiário, enquanto moradores, comerciantes e viciados corriam para outras esquinas da cidade. Mal orquestrada, a ação punha em xeque um programa político ambicioso, conhecido como Nova Luz. O projeto pretendia solucionar problemas antigos do bairro desapropriando construções, demolindo edifícios e concedendo incentivos fiscais a empresas privadas dispostas a investir na região. Com um empurrão do mercado imobiliário, uma área histórica da cidade perigava ir ao chão. Assim como a disseminação do crack no bairro só virou notícia quando a situação já estava consolidada, a demolição de uma região é um processo lento e traumático, que corria o risco de passar despercebido.

Cidades são organismos vivos – nascem, crescem e se desenvolvem. Raramente morrem e, em geral, sobrevivem àqueles que as moldaram ou que nela vivem. Eventos pontuais e distendidos fazem parte dessa cronologia. A convite da revista ZUM, Mauro Restiffe fotografou a região da Luz dias depois da ação da polícia. Sua câmera estava menos interessada na intervenção pontual e mais preocupada em dar forma e textura às consequências urbanas produzidas por anos de descaso com a região. Construções decadentes, terrenos abandonados, pessoas caminhando a esmo ou partindo em retirada eram parte de um cenário cinzento e melancólico, que expunha as dolorosas cicatrizes do bairro.

É da estranha vida das cidades que trata boa parte do trabalho de Mauro Restiffe. Este livro é um desdobramento do projeto iniciado em 2012. Convidado a aprofundar o olhar sobre São Paulo, Restiffe estendeu as caminhadas por outros bairros. Durante meses, percorreu regiões centrais, como Sé, Brás, Campos Elísios e Barra Funda, e outras mais distantes, como Vila Romana, Vila Congonhas e Itaquera. O resultado são as 50 fotografias reunidas neste livro (São Paulo, Fora de Alcance): um ensaio visual sobre a paisagem humana, arquitetônica e topográfica de São Paulo e uma representação aguçada das tensões políticas e sociais que atravessam o espaço urbano.

Os usos variados que fazemos da cidade, a maneira como lidamos com o patrimônio arquitetônico, a multiplicidade de planos oferecidos pelo relevo urbano – tudo isso faz parte de um conjunto organizado na imagem por uma malha monocromática feita de pequenos grãos de prata. Momentos diferentes também convivem no trabalho. Eventos cotidianos, como os deslocamentos diários ou os passeios de fim de semana, combinam-se a fatos extraordinários, como um dos vários protestos do último ano ou o incêndio no Memorial da América Latina. O que vemos é o espaço e o tempo das cidades, aquilo que lhes dá corpo e vida.

Vão livre, 2011.

Onde há vida, há embate e conflito. A fotografia do Museu de Arte de São Paulo é um bom exemplo de como Restiffe combina elementos e situações complexas numa única imagem. Projetado por Lina Bo Bardi e inaugurado em 1968, tudo o que vemos do MASP é seu vão livre e sua vista. Ocupado alternadamente por moradores de rua, manifestantes, usuários de drogas, turistas e transeuntes, o vão quase foi gradeado. Seu destino continua sendo objeto de controvérsia pública, com vozes distintas tentando encontrar uma solução comum para o espaço. A bela vista do horizonte, resguardada por Lina, é o lugar de onde despontam as torres e os guindastes que a arquiteta italiana queria ter mantido distantes. Prédios e pessoas estão imersos numa densa contraluz, enquanto, ao fundo, a cidade é cinza. Ao mostrar a distância entre o espaço planejado e a maneira como ele é usado e disputado, Restiffe também dá ao trabalho conotações políticas.

Em 1935, um jovem professor francês chegou ao país para trabalhar na Universidade de São Paulo. Claude Lévi-Strauss ainda não era um antropólogo consagrado, mas a descrição que fez do ciclo das cidades, muitos anos depois, a partir de sua experiência paulistana, conversa diretamente com as fotos de Restiffe.

As cidades do Novo Mundo, diz Lévi-Strauss em Tristes Trópicos(1955), sofriam da falta de dimensão temporal, eram filhas do tempo comprimido. Não eram apenas cidades novas, mas passavam da juventude à decrepitude sem conhecer a idade da sabedoria. “Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a passagem dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal. No momento em que surgem, os novos bairros nem sequer são elementos urbanos: são brilhantes demais, novos demais, alegres demais para tanto. Mais se pensaria numa feira, numa exposição internacional construída para poucos meses. Após esse prazo, a festa termina, e esses grandes bibelôs fenecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem traçam seus sulcos, o estilo sai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições exigidas, ao lado, por outra impaciência. Não são cidades novas contrastando com cidades velhas; mas cidades com ciclo de evolução curtíssimo, comparadas com cidades de ciclo lento. Certas cidades da Europa adormecem suavemente na morte; as do Novo Mundo vivem febrilmente uma doença crônica; eternamente jovens, jamais são saudáveis, porém.”

Não há dúvida de que parte da frustração e do fascínio que São Paulo continua a exercer sobre seus habitantes vem desse ciclo acelerado e da dificuldade em domesticar inteiramente o espaço urbano. Com 11 milhões de habitantes, a cidade possui uma infraestrutura gigantesca e corrompida, submetida aos mandos e desmandos de administrações conflitantes.

Largo da Batata #1, 2014.

Uma fotografia feita por Restiffe no Largo da Batata é um bom exemplo de como a arte pode refletir sobre o espaço urbano. A imagem apresenta uma ampla praça de calçamento inacabado, pontuada por um pinheiro e árvores dispersas, dutos e toras abandonadas e uma profusão de postes novos e antigos amparando fios mal-ajambrados. A praça é ladeada por construções de épocas e estilos diferentes: a antiga igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat, edifícios com fachadas desencontradas, o enorme volume pós-moderno que abriga o SESC Pinheiros. A maneira como os fios recortam a cena ou como os pedestres se movimentam adiciona planos e ritmo à imagem. Uns cruzam a rua na faixa, outros, fora dela; uns caminham pelas calçadas, outros seguem junto ao meio-fio. Entroncamento importante da cidade, o largo está simultaneamente em reforma e em ruína.

No contexto de uma exposição, a imagem do Largo da Batata é exibida com um metro e meio de comprimento. Mesmo que de forma não intencional, o trabalho de Restiffe acena para duas importantes vertentes da história da fotografia. De um lado, a tradição social da fotografia de rua americana, ligada à imprensa e interessada nas pessoas e no drama humano. De outro, a corrente promovida pelos fotógrafos da academia de Düsseldorf, que investiram sobre as cidades fascinados com o espetáculo da arquitetura. Nomes como Robert Frank, Garry Winogrand e Lee Friedlander palmilharam Nova York a partir dos anos 1950 e produziram imagens monocromáticas explosivas e introspectivas – um retrato pungente dos conflitos que rondavam a sociedade americana. Na Alemanha, fotógrafos como Andreas Gursky e Thomas Struth apresentaram as construções urbanas com a clareza descritiva das câmeras de grande formato e das dezenas de megapixels. As imagens gigantescas e o procedimento rigoroso punham a fotografia em contato com a história da arte conceitual e da pintura. Pessoas, arquitetura, a escala monumental e o instantâneo fazem parte do amálgama de Restiffe.

Se nos aproximarmos de suas imagens, veremos que a cena urbana se desfaz em minúsculos grãos de prata, resultado da ampliação dos filmes de alta sensibilidade. Apesar de muito semelhantes entre si, nenhum grão é igual ao outro. Talvez haja uma ordem entre eles, a despeito do caos aparente. É isso que sentimos na cidade. Não é difícil pensar que a alta granulação da fotografia possa servir de metáfora para nossa organização social e urbana.

Mesmo que os planejadores de uma cidade fossem indiferentes ao espaço, as cidades seriam o produto de uma estrutura mental subjacente, uma ordem quase fora de alcance, que se insinuaria sobre os lugares vagos para se expressar de forma simbólica ou real, “um pouco como as preocupações inconscientes se aproveitam do sono para se exprimir”, diz Lévi-Strauss na apresentação de Saudades de São Paulo (1996), livro que reúne suas fotografias da cidade, tiradas entre 1935 e 1937.

Depois de percorrer e fotografar incansavelmente São Paulo, Restiffe talvez tenha intuído uma ordem. Ao conjugar planos, vistas e acontecimentos simultâneos, ao expor a interação entre espaço, pessoas e arquitetura, ao sugerir que a experiência urbana é uma realidade fragmentada, definida por microscópicos pontos de vista, o artista também age como um planejador inconsciente, que constrói, mesmo sem perceber, uma nova forma visual para representar a cidade.

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