Viver no Rio de Janeiro é dessas experiências que confirma a frase “Nada é simples”, com a qual a professora Katerina Bilova, personagem de Fale com ela vivida por Charlote Hampling, fecha as cortinas, encerra um espetáculo de balé e dá fim a complexa trama de amor do filme de Pedro Almodóvar. A capital fluminense não vale o preço que se paga pelo metro cúbico de oxigênio respirado, como me disse um amigo paulista recém-chegado por aqui. O tema das nossas condições urbanas me parece particularmente complexo neste momento em que cada um dos cariocas pode experimentar, dependendo do lugar onde mora e da situação em que se encontra, a condição perversa em que vivemos, sistematicamente expulsos, real ou simbolicamente.
Daqui a bem pouco tempo, a cidade será palco dos Jogos Olímpicos, e aqui me parece particularmente adequado o uso da palavra – é um teatro para o público internacional, festa que acontece em meio a imensas incertezas sobre o tal legado olímpico (O metrô vai voltar a funcionar? O VLT vai ser completado? A Baía de Guanabara vai ficar limpa?). As dúvidas sobre o futuro se sobrepõem às dificuldades do presente, em que patrimônios estaduais como a UERJ estão ameaçados por falta de recursos, hospitais públicos estão fechando as portas e até a nossa indefensável polícia faz protesto contra as péssimas condições de trabalho. Pouco importa, diante deste quadro, a velha distinção entre as três esferas de poder, federal, estadual ou municipal. Importa que a face do Estado apresentada ao carioca – e também ao fluminense – é agudamente desigual.
Diante de qualquer atitude crítica, ufanistas costumam responder evocando as imensas belezas naturais que nos cercam. De fato, talvez o Rio de Janeiro seja mesmo a única metrópole urbana com características de balneário. Se há dúvidas sobre o acento em fazer do Rio uma cidade de veraneio, voltada para a indústria do turismo que se impõe em detrimento das necessidades cotidianas de quem mora aqui, a mim parece que há ainda mais dúvidas sobre a expressão “metrópole urbana”.
Basta olhar para a vizinha São Paulo para perceber o quão longe estamos da categoria metrópole. Temos os problemas urbanos de metrópole, é verdade, mas estamos muito longe de ter esboço de soluções. Aqui, historicamente a categoria cidade se sobrepõe à restritiva – cultural e socialmente – categoria Zona Sul, um pequeno e disputado pedaço de terra onde a concentração de bens e serviços faz supor que somos mais um balneário do que de fato uma metrópole. Se na capital paulistana é possível se espalhar por diferentes bairros que, cada um a seu modo, oferece a possibilidade de autonomia do morador em relação a outros bairros, no balneário carioca tudo acontece da Praça Mauá ao Pontal, já tomando uma percepção mais benevolente, inclusiva, que considera como consolidadas as transformações urbanas na área do porto.
São áreas de forte especulação imobiliária onde, mesmo que você tenha lido nos jornais sobre a queda dos preços, os proprietários de imóveis continuam fazendo exigências absurdas para aluguel e os preços de venda resistem em confirmar o noticiário mais otimista. Se o mar ainda pauta o valor de cada pedaço de terra no Rio de Janeiro, talvez seja justamente no mar que esteja nossa maior contradição. Visto de longe, oceano, baía e lagoas são de uma beleza ímpar e completam a geografia da cidade cravada entre montanhas. Vistos de perto, estão cobertos de lixo de superfície e dejetos, poluídos por esgotos lançados direta ou indiretamente, fazendo das praias palco – aqui também no sentido teatral – de uma festa farsesca.
Mas se tudo isso parece poder ser superado durante a temporada olímpica, nada disso me parece poder ser superado nos dias, semanas e meses que se seguirão. Que os moradores do Flamengo ou de Botafogo não possam usar a praia que banha suas areias, que a bucólica Paquetá tenha se tornado uma extravagância de jovens alternativos, que bairros como a Ilha do Governador ou Ramos tenham perdido suas praias para o esgoto, e que cidades como Niterói, Araruama e São Pedro da Aldeia estejam tentando driblar a poluição de suas praias e lagoas ainda é parte de uma tragédia urbana escondida sob as cortinas da nossa tragédia, invisível aos visitantes e ignorada por governantes.