Academia.edu, uma comunidade em fluxo

Internet

28.07.15

“Comunidade acadêmica”. Palavras justapostas e aparentemente anódinas que nomeiam uma coletividade tão autoevidente quanto infigurável. A expressão tem menos a ver com a experiência de um estar junto constante do que com uma medida incessantemente renegociada entre proximidade e distância, conflito e adesão. Os professores, pesquisadores, estudantes e todo o corpo técnico-administrativo das universidades geralmente projetam de si uma imagem contraditória ou vaga, mas suficientemente operante para não deflagrar crises de identidade a cada final de semestre letivo.

Home do site Academia.edu promete aumentar o número de citações recebidas pelo seu trabalho

Essa infigurabilidade torna-se incômoda toda vez que a comunidade necessita de algum tipo de representação, de uma voz que a projete publicamente em seu conjunto. É o que ocorre agora entre nós, quando claramente os sindicatos universitários já não conseguem articular as diferentes vozes da comunidade em nome da qual atuam. Também a linguagem por eles empregada diz mais sobre a teatralidade mórbida do sindicalismo do que sobre os anseios da comunidade acadêmica. No lugar de um discurso da comunidade, surge uma espécie de dublagem ruim, capitaneada por vozes histéricas cuja impostação contrasta tragicomicamente com o real do corpo universitário e suas práticas discursivas.

A possibilidade de traduzir e projetar uma imagem pública a partir dos enlaces e dos nós que articulam estudantes, docentes, técnicos e demais funcionários fracassa de antemão numa encruada retórica que oferece a comunidade acadêmica de bandeja às críticas ligeiras e oportunistas. O senso comum exige que a universidade, notadamente a pública, reflita uma imagem ao mesmo tempo fidedigna e respeitável da sociedade que ela mesma tem como missão formar e transformar, mas que frequentemente a descreve em termos desabonadores.

Se a articulação de uma voz pública é problemática, o que dizer do contato interno entre as vozes, daquilo que a comunidade acadêmica troca entre si? O assunto é menos escandaloso e não se presta tanto ao gozo midiático. Até há pouco os espaços de troca interna se restringiam ao ambiente das reuniões departamentais, ações de núcleos e laboratórios de pesquisa, momentos de escuta e algum raro debate em congressos, seminários ou jornadas.

O desenho dos espaços de troca não parece ter sofrido grande alteração com o surgimento de bancos de teses, dissertações e bibliotecas on-line. Tampouco a criação de revistas e plataformas digitais, que recolocam em circulação uma produção esgotada e invisível, teve impacto sobre os modelos de interlocução ou sobre os modos de contato e reconhecimento mútuo.

Nesse contexto, torna-se particularmente interessante a adesão crescente e o uso cada vez mais dinâmico do Academia.edu, pois o site parece possibilitar um modo de contato e troca ligeiramente diferente do que até então estava disponível na internet para a comunidade acadêmica. Essa pequena diferença, no entanto, tem múltiplos e interessantes efeitos sobre os quais vale a pena refletir. A temporalidade das trocas não se assemelha àquela das revistas digitais e das publicações das editoras universitárias, e menos ainda com o ritmo da experiência proporcionada em seminários, cada vez mais frenéticos e superficiais, onde quase não sobra tempo para o diálogo, para o dissenso, para a réplica.

Além de criar uma plataforma de contato entre a produção dos acadêmicos oficialmente vinculados a universidades e instituições de pesquisa e os pesquisadores independentes, o site rompe com rituais hierárquicos que regulam os processos de visibilização da produção universitária em todas as áreas – para algumas áreas, notadamente as científicas e médicas, essa possibilidade é realmente revolucionária.

Academia.edu é um site de compartilhamento individual de produção acadêmica que segue o formato das redes sociais. Ou seja, o autor (em sua quase totalidade professores e/ou pesquisadores) é ali, ao mesmo tempo, o editor e o curador de sua própria produção. É, ademais, o curador de sua timeline e dos seus campos de interesse. Recebe, em tempo real, notícias sobre a disponibilização de novos artigos por parte daqueles que escolheu seguir (seria mais apropriado dizer “acompanhar”, já que, diferentemente do Facebook, nessa rede, em que não há lugar para curtições ou espetáculos histéricos de opinião, os usuários acompanham e leem. É possível enviar mensagens pessoais e participar de “salas de discussão” dedicadas a textos ainda em elaboração. Como ora funciona, o Academia.edu tem menos de rede social do que de banco de dados em fluxo.

Foi fundado por Richard Price, ex-aluno da faculdade de filosofia da universidade de Oxford, conhecido inicialmente como micro-empresário de bolos de banana e por sanduíches personalizados que vendia para escritórios londrinos, hoje é reconhecido como grande empreendedor e criador do site que já conta com mais de 18 milhões de usuários registrados e cerca de 16 milhões de acessos por mês. A história do vendedor de sanduíches, que, por senso de oportunidade e percepção do vácuo ainda existente entre a Academia e as plataformas digitais, não é apenas mais uma história pitoresca de sucesso empresarial, mas reflete uma mudança importante de comportamento no âmbito universitário e a necessidade de romper com protocolos e monopólios do saber institucionalizado. O site desbanca algumas velhas práticas de cerceamento do conhecimento, sobretudo o científico, que nos Estados Unidos é mais violentamente sequestrado pela força do capital privado do que aqui. O Academia.edu colocou-se abertamente contra o Research Works Act, também conhecido como H.R. 3699, projeto de lei apresentado à Câmara dos Representantes dos Estados Unidos em 16 de dezembro de 2011, que contém dispositivos para proibir o acesso gratuito a trabalhos científicos financiados com recursos públicos.

O efeito imediato dessa mercantilização do conhecimento é a falta de comunicação entre pesquisas que se desenvolvem em instituições do primeiro e do terceiro mundos, assim como a lentidão das trocas entre Ocidente e Oriente. Quando o pensamento teórico-crítico e as pesquisas científicas e tecnológicas avançam de modo mais dialógico e aberto, os efeitos desse contato são sentidos não apenas no âmbito interno da universidade, uma vez que o desenvolvimento de remédios e tratamentos inovadores para doenças graves ou novas soluções de engenharia capazes de reduzir, a baixo custo, a emissão de gases tóxicos na atmosfera também têm muito a ganhar com uma troca mais livre de informações. Na área científica, a quebra do monopólio mercantil do conhecimento foi encarada como ameaça pela Elsevier, poderosa empresa que lidera a publicação de informação científica e médica, responsável por inúmeras revistas nessas áreas. Em 2013 representantes da Elsevier exigiram que professores retirassem seus artigos do Academia.edu. Na sequência das pressões da Elsevier o Academia.edu convidou os professores afetados a assinarem uma petição de boicote a Elsevier gerando intensas discussões sobre “o fim de uma era de liberdade no Academia.edu”. O fato, é claro, despertou o interesse sobre a própria natureza legal dos repositórios digitais e sobre os limites dos direitos autorais para pesquisas financiadas ou cofinanciadas com dinheiro público.

O funcionamento do site é bastante trivial: cada usuário cria um perfil com um mínimo de dados profissionais e ali pode disponibilizar seus textos ou aqueles que julgar relevantes, em formato pdf ou word. Pode também criar links para revistas cujos arquivos já estejam disponíveis. Como no Facebook, cada usuário vê uma timeline com os últimos textos disponibilizados e, em vez das famigeradas “curtidas”, aparece na tela um pequeno olho com a indicação de quantas visualizações e downloads o texto angariou. O sistema de rastreamento de leitores permite que cada um saiba em que país, e eventualmente mesmo em que cidade, estão situados os seus leitores. Há ainda um sistema mais elaborado por meio do qual os usuários podem criar “reuniões” privadas, para as quais convidam alguns followers (infelizmente o vocabulário dessas redes ainda é bastante problemático) para participar, ler, opinar. A tônica do site, porém, é mesmo o compartilhamento e a leitura, digamos assim, silenciosa, que prescinde da bajulação ou do despejo frenético de opiniões.

Aqui no Brasil, revistas acadêmicas na área de humanas em geral não costumam colocar entraves e chegam até a incentivar seus colaboradores a disponibilizar artigos na internet, passado certo tempo desde a primeira publicação. Esses editores entendem que o autor continua sendo, em última instância, o responsável pelo que escreve e que a redivulgação de seus textos em um site pessoal ou em plataformas acadêmicas não entra em conflito com os interesses das próprias revistas, podendo, ao contrário, ajudar na divulgação das mesmas.

No caso da divulgação no Academia.edu, pode-se acrescentar que a rede propicia contato mais dinâmico com a produção de pesquisadores e professores latino-americanos e portugueses, driblando, ainda que momentaneamente, a hegemonia dos bancos de dados majoritariamente anglófonos, como o Scribd ou o Google Scholar. A julgar por este último, só ensaios redigidos em inglês são academicamente relevantes, o mundo hispânico ou lusófono praticamente inexistindo para esses robôs de indexação. Academia.edu mostra também que as áreas de atuação não são nunca homólogas aos campos de interesse, e que estes são em geral mais polivalentes e idiossincráticos do que se pode imaginar.

Nas muitas conferências realizadas em faculdades norte-americanas nas quais participou como convidado de honra, Jacques Derrida insistia no fato de que a universidade é permanentemente atravessada pelas tensões entre a liberdade acadêmica e a limitação institucionalizada que regula essa mesma liberdade. A universidade não existe e não poderia existir fora desse paradoxo que a constitui. E o paradoxo – diferentemente da contradição estéril – produz saídas e, talvez, justamente onde menos se espera. A criação de novos dispositivos de arquivamento e anarquivamento da produção acadêmica poderão apontar para algumas saídas que não são fugas, mas modos de transpor, ainda que momentaneamente, os limites internalizados como necessários e naturais ao percurso do saber produzido.

Na contramão do investimento retórico na ideia de comunidade, as práticas comunitárias têm mostrado que a força de uma comunidade depende sempre da sua capacidade de exercer contra si mesma uma pressão crítica, uma pressão que não a deixe naufragar no brilho da sua própria imagem refletida, ou que evite a cristalização de suas vozes dissonantes numa única identidade forte. No caso da comunidade acadêmica, as plataformas digitais como o Academia.edu podem ajudar a expor e tornar legíveis os limites institucionais, os sistemas de avaliação e a hierarquização da produção universitária, tornando mais claros os entraves estruturais e o fundo falso ou frágil dos projetos inter e transdisciplinares. Não é muito, mas já é alguma coisa. Mostra que o paradoxo da academia, para ser produtivo, depende sempre de uma autoconsciência dos estrangulamentos, da percepção de que os modelos atuais de troca de conhecimento propiciam certo fluxo mas também impedem ou postergam de modo talvez trágico o contato do qual depende o avanço do debate crítico e das pesquisas nos mais diversos campos.

O Academia.edu não está livre de ser capturado pelo que há de mais mesquinho e idiotizante na economia virtual, e deve ser encarado com sobriedade. Seria uma pena isso acontecer antes de termos explorado melhor as possibilidades que oferece, mas, por enquanto, a imagem do fluxo que projeta é um dado importante para a reflexão sobre os ritmos, fundamentos e moldes das trocas no campo ampliado da comunidade acadêmica.

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