Ana Cristina Cesar lê Clarice

Por dentro do acervo

23.08.12

Reconhecemos em Clarice Lispector a admirável habilidade de, mais do que traçar narrativas, criar sulcos na linguagem, levando esta a um avesso de si mesma. Uma imagem deleuziana que, na verdade, teoriza o boom de leitores que, com pouca margem de erro, se tornam admiradores de seu estilo de escrita. Entre eles, a poeta Ana Cristina Cesar, declaradamente atingida pela literatura clariciana.

Prova disso se encontra no exemplar da primeira edição de A legião estrangeira, coletânea de contos de Clarice Lispector, publicada pela Editora do Autor em 1964, que se destaca na biblioteca pessoal de Ana Cristina, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 1999.

As impressões e os comentários feitos por Ana Cristina tornam o livro preciosíssimo. Considerando-se os anos desde a edição até hoje, o exemplar está com sua estrutura um tanto comprometida. Tal condição física lembra a fala de José Miguel Wisnik no evento “Hora de Clarice”, em dezembro de 2011, no qual o ensaísta afirma que os livros de Clarice Lispector convidam a um outro tipo de leitura, de contato, um verdadeiro corpo a corpo, e exemplifica ao confessar que seu próprio exemplar de A legião estrangeira está deteriorado não pelo tempo, mas, sobretudo, pelo uso.

É de conhecimento coletivo que Ana Cristina costumava fazer resumos, anotações, riscos – verdadeiras interações com os livros que lia. Logo na folha de rosto da edição de A legião estrangeira, ela avisa: “antes de ler este volume veja a página 137”. Seguindo a pista, somos levados a um texto intitulado “Mas já que se há de escrever…”, composto de apenas duas linhas: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. A lápis, Ana Cristina assinalou: “genial” – adjetivo que seria usado para qualificar diversos outros trechos ao longo do livro. Acima do aviso estão a data e o local – presume-se – do início da leitura: Porto Alegre, 12 de dezembro de 1967. 

Ana, que contava apenas quinze anos e já havia escrito “Onze horas” e o dístico arrebatador “Ciúmes”, louva a percepção da escritora Clarice em “Evolução de uma miopia”, nono conto do livro. Acima do título “Os desastres de Sofia”, paira um “entusiasmante”.  Sobre “Os obedientes”, a jovem poeta elogia: “genial mesmo”, “essa Clarice é demais!” e “mas que poder de captar e transmitir sensações”. E tal como uma íntima amiga a quem é pedida opinião, sugere o título “O pinto” em vez de “A legião estrangeira”, e explica: “não faz jus”. Os elogios avançam nos contos seguintes: “bárbaro”, “angustiante”, “delicioso”, “ótimo”, “amor” a “excepcional”.

Os comentários de Ana Cristina tornam-se mais veementes num dos contos mais enigmáticos de toda a obra clariciana, “O ovo e a galinha”. Sobre este, Ana sentencia: “filosofando genialmente Clarice nos cansa”; na página seguinte, “chato, embora com algumas ideias boas”; e ainda, “tá forçando, Clacla!”. (Sim, lê-se nitidamente “Clacla”, o que enfatiza a intimidade de Ana com a escritora Clarice e o quanto autora e leitora compartilham o mundo; como alguém de um círculo de amigos a quem nomeamos como nos apraz.) E no final do conto, dá seu parecer: “chato paca no conjunto”, poupando o último parágrafo do conto, que é salvo por um seco “isso é bom”.

A segunda parte do livro, Fundo de Gaveta, composto por crônicas, pequenos contos e escritos, está igualmente repleta de interessantes anotações, além dos vários excertos sublinhados, títulos circulados, inúmeras exclamações e indicações intertextuais – expressões de leitura que revelam uma entrega viva de Ana C. àquilo que lê, e que só nos é revelado graças a seu hábito de assinalar, dialogar e rasurar o texto. Ao lado do título “A vez de missionária”, por exemplo, Ana questiona: “= a fraqueza, a fragilidade?”, e na borda direita da página 206, onde está a parte final do conto “O primeiro aluno da classe”, nos leva a refletir: “a força faz ou desfaz a união?”.

Comentários mais vívidos sobressaem em várias outras páginas, que vão desde um parecer mais estilístico-estrutural, como “o jogo de palavras!” e “genial a descrição do diálogo”, até uma espécie de encantamento arrebatado com “genialíssimo”, “Clarice, a própria, a única”, “Clarice grávida”, “Não te reconheço” e “Cla-ri-ce!”.

O texto “Boa notícia para uma criança” é rebatido por Ana com o maior dos comentários, já revelando um estilo de escrita enxuto, intimista e penetrante. Lê-se em sua anotação: “Mentira. O corpo nos abandona a cada minuto. E quantas vezes fica longe de mim, longe como um vestido longo, longe como um amor inútil”.

Em resposta ao trecho “Enquanto chora, vai se reconhecendo, transformando-se naquele que a mãe reconhecerá”, do notável conto “Desenhando um menino”, Ana tece também notável comentário: “Você penetrou onde não nos é dado a penetrar. Você violou o negro!”. E, ainda neste conto, Ana escreve – na verdade, parece gritar – “eu eu eu” ao lado de “A gente dizia: aquele cara morreu com vinte anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com setenta anos de corpo”.

Mas a sentença final, não sem ironia, de Ana Cristina Cesar sobre todo A legião estrangeira está na última página: “dispenso os elogios”.

,