As palavras da menina Ana C.

Por dentro do acervo

29.10.13

 

Crianças são naturalmente capazes de fabular, de interpretar diferentes papéis sociais, de ver o mundo pela perspectiva ainda não enquadrada dos adultos. São naturalmente poéticas. Logo, não deveriam causar espanto os escritos dessa fase da vida de Ana Cristina Cesar. Mas causam. O espanto aumenta quando pensamos que boa parte dos textos de sua infância se manifesta no gênero literário considerado um dos que exigem maior labor com a língua: o poema.

Um dos primeiros poemas publicados de Ana Cristina Cesar é “Uma poesia de criança”. A composição, com cinco estrofes, saiu em agosto de 1958 no boletim escolar direcionado aos professores da educação infantil do Colégio Bennett, onde ela estudava. É bem verdade que, aos seis anos de idade, Ana, que cursava o pré-primário, ainda não tinha o domínio da escrita, o que não a impediu de, não apenas uma ou duas vezes, ditar os versos aos pais.

Não demorou muito e seu talento precoce foi reconhecido pela escritora Lúcia Benedetti. Em artigo de novembro de 1959, “Poetisas de vestidos curtos”, publicado no jornal carioca Tribuna da Imprensa,Benedetti afirma:

“Ao entregar ao público os versos de Ana Cristina, sinto a mesma natural reação de alguém que vê nascer uma flor num canteiro cultivado. Ana Cristina começou a fazer poemas antes de saber ler e escrever. O mecanismo de escrita ainda não está para ela suficientemente adestrado para correr em socorro de sua inspiração poética”.

Em 1960, Ana Cristina Cesar já sabia e gostava de escrever. É o que comprova o bilhete de 3 de dezembro desse ano, cujo destinatário seria o Papai Noel. Em um dos desejos, Ana solicita, com a grafia ainda não muito firme, aquilo que seria sua matéria-prima: “três cadernetas e um bloco grande com pauta”, e continua: “Papai Noel, em todos os meus presentes quero um cartão. Escrito com a letra do Sr., hein?”.

Ana Cristina escreve. E pede ao bom velhinho que escreva. Saber escrever implica construir mundos, ainda que seja o seu próprio. Escrever é ter um grande poder: o uso da palavra. Aos oito anos, talvez Ana Cristina Cesar não soubesse disso. Mas quando, na década de 1970, compôs “as palavras escorrem como líquidos/ lubrificando passagens ressentidas”, poema recolhido no exemplar póstumo Inéditos e dispersos,estava consciente da pluralidade semântica que esses versos pequenos, mas ecoantes, poderiam sugerir.

Seu declarado interesse pela palavra ficou registrado não apenas nos livros publicados, mas em muitos dos cadernos que estão em seu arquivo aos cuidados do IMS: estudos, resenhas, poemas, rasuras e mais poemas. Em um deles, que data de 1961 (quem sabe um presente de Papai Noel no ano anterior), Ana Cristina Cesar, agora aos nove anos e já se considerando “autora”, deixa o aviso ao leitor: “Poesias – Só leia se estiver com o coração puro e doce”. Ler com o coração: pressuposto requerido para entender o ritmo ora denso, ora fluido da literatura de Ana Cristina Cesar.

Se julgamos prematura sua morte, aos 31 anos, no dia 29 de outubro de 1983, vemos por outro lado que seu início na vida literária, felizmente, também o foi. Com incrível desenvoltura revelada não só nos livros publicados até aquele ano como nos inéditos post-mortem, a autora de A teus pés ainda hoje nos deixa na mesma suspensão em que ficou antes de ir, por vontade própria, ao encontro da “Dama branca”, que, como escreveu Manuel Bandeira, lhe sorriu em todos os desenganos.

* Elizama Almeida é assistente cultural da coordenadoria de literatura do IMS.

NA LOJA DO IMS

Crítica e tradução – reunindo três livros num só volume, apresenta o pensamento crítico de Ana Cristina Cesar nas suas mais diversas vertentes.