À sombra da montanha García Márquez

Literatura

18.04.14

Por alguns anos Gabriel García Márquez foi apenas um nome estampado na capa de um livro que ficava na estante de meu pai. Era, aliás, a parte menos interessante daquela capa, a que menos me intrigava. Apesar de sua cadência envolvente, com o gê dobrado das capitulares e as sílabas tônicas nas vogais, não podia competir com as gravuras de Carybé que a ilustravam, muito menos com o título: Cem anos de solidão. A edição era da Editora Sabiá, a primeira a sair no Brasil, em 1968.

Impossível saber quantas horas gastei enfiado no sofá com aquelas duas cartas de tarô de Carybé que exibiam a Roda da Fortuna e O Diabo, palmilhando a mão azul da quiromancia em busca de sinais do futuro. E o título: Cem anos de solidão ? como se poderia viver tanto assim, e ainda mais sozinho? Era o que eu me perguntava. Nem o Conde de Monte Cristo ou o Prisioneiro da Máscara de Ferro sobreviveriam todo esse tempo.

Os anos 1980 comiam soltos, a abertura política engatinhava, e eu já havia lido outra saga familiar, a de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Mas nenhum Capitão Rodrigo me prepararia para o que vinha pela frente: Macondo era simplesmente o Mato Grosso que me arrodeava então, com suas florestas onde grassava a magia da realidade. A saga dos Buendía não deixava de ser a própria história de minha família, ou ao menos como eu achava que ela deveria ter sido.

Para aqueles nascidos com as ditaduras latino-americanas em curso, como é o caso de minha geração, o escritor colombiano tinha a solidez de um busto e a ubiquidade de uma efígie postal: um clássico em vida, com o acréscimo dos rumores de sua militância política. Ao mesmo tempo que se tratava do nome na capa de livros que admirávamos, também era o homem de vastos bigodes e sobrancelhas bondosas que posava com Fidel, o papa, a torcida do Corinthians e a do Palmeiras. Recordava, deste modo, uma conciliadora figura paterna ? esquecido havia muito o prazer que nos dera como leitores ? a ser combatida.

Ou ao menos minimizada. Foi o que esclareceu o tradutor espanhol Basílio Losada em visita ao Brasil no início dos anos 2000, esclarecendo que García Márquez era “um nome que podia ocultar toda uma literatura”. Referia-se à enorme projeção do escritor, cuja sombra encobria toda a produção literária que o sucedeu. O colombiano então deixava de ser um selo para adquirir a robusta presença de um topônimo. Em 2005 registrei a questão em um artigo da revista “Cult” reproduzido pelo Uol e fui apedrejado com cerca de novecentos comentários.

Tal visão parecia comum à leva de escritores surgidos nos anos 1990. Na Flip de 2007 tive a oportunidade de mediar um debate entre o mexicano Ignacio Padilla e o argentino Rodrigo Fresán. Desde o título, a mesa trataria de homenagear García Márquez. Conforme os ânimos esquentavam, porém, a conversa adquiriu mais o tom de crítica e de elogio ao surgimento de Roberto Bolaño.

Com a morte de Gabriel García Márquez, enfim minha geração poderá relê-lo sem os prejuízos e preconceitos suscitados por sua presença física de gigante.

Joca Reiners Terron é escritor, autor de A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves e outros livros.

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