Por alguns anos Gabriel García Márquez foi apenas um nome estampado na capa de um livro que ficava na estante de meu pai. Era, aliás, a parte menos interessante daquela capa, a que menos me intrigava. Apesar de sua cadência envolvente, com o gê dobrado das capitulares e as sílabas tônicas nas vogais, não podia competir com as gravuras de Carybé que a ilustravam, muito menos com o título: Cem anos de solidão. A edição era da Editora Sabiá, a primeira a sair no Brasil, em 1968.
Impossível saber quantas horas gastei enfiado no sofá com aquelas duas cartas de tarô de Carybé que exibiam a Roda da Fortuna e O Diabo, palmilhando a mão azul da quiromancia em busca de sinais do futuro. E o título: Cem anos de solidão ? como se poderia viver tanto assim, e ainda mais sozinho? Era o que eu me perguntava. Nem o Conde de Monte Cristo ou o Prisioneiro da Máscara de Ferro sobreviveriam todo esse tempo.
Os anos 1980 comiam soltos, a abertura política engatinhava, e eu já havia lido outra saga familiar, a de O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Mas nenhum Capitão Rodrigo me prepararia para o que vinha pela frente: Macondo era simplesmente o Mato Grosso que me arrodeava então, com suas florestas onde grassava a magia da realidade. A saga dos Buendía não deixava de ser a própria história de minha família, ou ao menos como eu achava que ela deveria ter sido.
Para aqueles nascidos com as ditaduras latino-americanas em curso, como é o caso de minha geração, o escritor colombiano tinha a solidez de um busto e a ubiquidade de uma efígie postal: um clássico em vida, com o acréscimo dos rumores de sua militância política. Ao mesmo tempo que se tratava do nome na capa de livros que admirávamos, também era o homem de vastos bigodes e sobrancelhas bondosas que posava com Fidel, o papa, a torcida do Corinthians e a do Palmeiras. Recordava, deste modo, uma conciliadora figura paterna ? esquecido havia muito o prazer que nos dera como leitores ? a ser combatida.
Ou ao menos minimizada. Foi o que esclareceu o tradutor espanhol Basílio Losada em visita ao Brasil no início dos anos 2000, esclarecendo que García Márquez era “um nome que podia ocultar toda uma literatura”. Referia-se à enorme projeção do escritor, cuja sombra encobria toda a produção literária que o sucedeu. O colombiano então deixava de ser um selo para adquirir a robusta presença de um topônimo. Em 2005 registrei a questão em um artigo da revista “Cult” reproduzido pelo Uol e fui apedrejado com cerca de novecentos comentários.
Tal visão parecia comum à leva de escritores surgidos nos anos 1990. Na Flip de 2007 tive a oportunidade de mediar um debate entre o mexicano Ignacio Padilla e o argentino Rodrigo Fresán. Desde o título, a mesa trataria de homenagear García Márquez. Conforme os ânimos esquentavam, porém, a conversa adquiriu mais o tom de crítica e de elogio ao surgimento de Roberto Bolaño.
Com a morte de Gabriel García Márquez, enfim minha geração poderá relê-lo sem os prejuízos e preconceitos suscitados por sua presença física de gigante.
Joca Reiners Terron é escritor, autor de A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves e outros livros.