Manuel Bandeira: a vida inteira

Por dentro do acervo

19.04.14

Em 1976, quando Bandeira teria se tornado nonagenário, Carlos Drummond de Andrade, desafiando o silêncio da morte, escreveu:

Oi, poeta!

Do lado de lá, na moita, hein? fazendo seus novent’anos…

E se rindo, eu aposto, dessa bobagem de contar tempo,

de colar números na veste inconsútil do tempo, o inumerável,

o vazio-repleto, o infinito onde seres e coisas

nascem, renascem, embaralham-se, trocam-se,

com intervalos de sono maior, a que, sem precisão científica, chamamos de

[morte.

[…]

Hoje me sobe o desejo

de saber o que fazes, como,

onde:

em que verbo te exprimes, se há verbo?

em que forma de poesia, se há poesia,

versejas?

em que amor te agasalhas, se há amor?

em que deus te instalas, se há deus?

Neste 2014 faz 128 anos que Manuel Carneiro de Souza Bandeira veio ao mundo, na Capunga, arrabalde do Recife, e nada melhor do que dizer os versos de Drummond para homenagear o poeta de Pasárgada em mais um 19 de abril.

Treze dos 82 anos de vida de Manuel Bandeira foram vividos na rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, no bairro carioca de Santa Teresa. Depois de ter perdido a mãe, a irmã e o pai, ele chegou à rua pacata em 1920 para morar sozinho pela primeira vez. Aos 34 anos de idade, certamente já não era mais cedo para começar a experiência de vida independente. Era o poeta de A cinza das horas e Carnaval,e não escondia sua vocação para o celibato.

A construção de porta e duas janelas era a sua “casinha”, como ele chamava o número 51 dessa rua, de onde, sobranceiro, gostava de ver a placidez da baía de Guanabara “como uma mesa posta”. Era essa a vista que desfrutava dos fundos daquele rés do chão, que, pela topografia, ocultava mais dois andares embaixo, ocupados por outros inquilinos.

Ali ele conviveu com “Irene preta, Irene boa, Irene sempre de bom humor”, sua empregada, que o encantava pela devoção com que fazia o polimento dos metais da casa do poeta e por sua paixão pelo carnaval – guardava dinheiro durante todo o ano para se fantasiar e cair na folia no período carnavalesco. Irene era gorda e boa, dizia o morador. Por saber unir o sagrado e o profano com natural sabedoria, não precisou da autorização de São Pedro – bonachão ao vê-la – para entrar no céu: “Entra, Irene, você não precisa pedir licença”, como se lê num dos poemas mais populares de Bandeira: “Irene no céu”.

Além dela, outras personagens do Curvelo se consagrariam na obra bandeiriana. Em prosa, ele fixou Álvaro e Ernani, os meninos da crônica “A trinca do Curvelo”, que quebravam as vidraças de sua casa quando ele não lhes mostrava livros com figuras. Eram moleques da rua, seus amigos.  Ali também ele recebia dois talentos pernambucanos: o pintor Cícero Dias, morador do bairro, e o poeta Ascenso Ferreira, que, segundo o anfitrião, fazia “desarrumações tremendas” quando entrava. Ali recebeu Mário de Andrade e outros, o que levou o amigo e poeta Ribeiro Couto a chamar essa casa modesta de “pouso de poetas modernistas”. Naquele pedaço de morro Bandeira compôs grande parte dos poemas de Libertinagem, de que faz parte o antológico “Vou’me embora pra Pasárgada”. E foi nas tardes da mesma casinha que ele, solteirão apaziguado e tuberculoso vitalício, começou o romance com a holandesa Fréddy Blank, “toda a afeição de uma vida” do poema “A Moussy”, apelido de Fréddy Blank a partir de 1947 (Moussy significa avozinha, em holandês). Deixar tudo isso pungia – para usar um verbo que lhe era caro – a alma do poeta.

Mas, que jeito? O proprietário pedia a casa, a mudança de endereço se impunha. Ele trocaria “o silvo agudo do saguim”, do poema “Comentário musical”, “o sussurro sinfônico da vida civil”, metáfora do barulho que lhe chegava da Glória, do mesmo poema, pelo ruge-ruge da Lapa, onde alugaria um apartamento muito menor e sem vista. Feito o balanço de treze anos de vida como morador do Curvelo, e impregnado do que havia de mais franciscano em sua personalidade, ele escrevia a Mário de Andrade em 21 de janeiro de 1933:

“Tudo que está vivo e é essencial em mim está e continua comigo, sem ligação com casa, móveis ou paisagem. Foi a lição dessa mudança, que eu apreendia e ao contrário me deu um calor reconfortante de vida nova, de independência, de irresponsabilidade. Fiquei com vontade de não ter nada. Nada. Dar as poucas coisas bonitas que eu tenho a amigos seguros em cujas casas poderei vê-las quando quiser”.

Carta a Mário de 21 de janeiro de 1933. In: Correspondência MA & MB, pp. 548-549.

A tuberculose lhe ensinara a humildade, é ele mesmo quem reconhece na autobiografia literária Itinerário de Pasárgada. Humildade e resignação são próximas, e  foi com esse espírito que, em 16 de março de 1933, ele se instalou no número 57 da rua Morais e Vale, onde ocupou o modesto apartamento 12, de um quarto e sala. Nesse momento, compôs a quadrinha enigmática “O amor, a poesia, as viagens”, que Cecília Meireles, sem qualquer dificuldade para entendê-la, considerou-a “pura lágrima”.

Dali a um mês passou para o apartamento 54, que lhe possibilitava ver “as torres do convento da Lapa, os cocurutos dos arranha-céus da Avenida Rio Branco e um marzinho de telhados”, informava a Mário de Andrade em carta de 8 de abril de 1933. Mas estava acostumado à vista do mar. Sentia falta. Inquieto, conseguiria se mudar outra vez, no mesmo prédio, agora para o apto 73, de onde, ali sim, sentia “os ares oceânicos” novamente. No entanto, o desalento no “Poema do beco” deixa claro que a baía e a linha do horizonte não o confortavam: “O que eu vejo é o beco”, arremata ele o dístico contundente de que se compõe esse poema.

As moradias de Manuel Bandeira nunca deixaram de estar presentes em sua poesia. Na Lapa não seria diferente. A vida no meio do bairro boêmio, do barulho do bonde correndo os trilhos, das prostitutas, dos trabalhadores, lavadeiras, costureiras, daquela gente pobre e do beco sujo trazia o poeta para dentro do submundo urbano. Não mais o mundo que ele via do alto de Santa Teresa, onde se recolhia pacificamente depois das idas sempre parcimoniosas aos bares do Centro da cidade. Não mais a obediência ao horário regular do bonde de volta ao morro, onde encontrava o silêncio e a paisagem reconfortantes da baía. Devia se submeter apenas a seu horário pessoal, como tuberculoso comedido que era. E dentro de uma disciplina já lendária – os amigos riam de seus cuidados com a saúde – abriu espaço para se deixar contaminar livremente pela vida profana da Lapa, onde procurava a Estrela da Manhã, “pura ou degradada até a última baixeza”, como no poema de mesmo título. Na Lapa ele se identifica com o marinheiro que volta para o navio, para o mar alto, enquanto ele, o poeta, triste e desamparado, volta apenas para casa e para a estreiteza do beco:  “Mas eu, marinheiro?”, pergunta no poema “Marinheiro triste”.

Há na poesia desse seu período de morador da Lapa, sobretudo, muito de erotismo, daquele erotismo ardente e delicado tão especialmente bandeiriano de “A Estrela e o anjo”, cujo primeiro verso é: “Vésper caiu cheia de pudor na minha cama”. A imagem não deixou dúvida a Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza no prefácio de Estrela da vida inteira: a recorrência à estrela Vésper “simboliza a plenitude carnal numa das mais belas metáforas do êxtase amoroso”.

O leitor me perdoe, estou impedida de reproduzir o poema por questão de direitos autorais, mas peço: não deixe de ler (ou reler) os mais que perfeitos cinco versos restantes de “A estrela e o anjo”, o último de Estrela da manhã. Verá aí, como chamou Edson Nery da Fonseca, a “síntese feliz” que há entre a atitude mental e o estado de excitação sexual na poesia de Bandeira.

Na verdade, misticismo e erotismo na poética bandeiriana são indissociáveis muito antes do período da Lapa – é o que se vê em “Toante”, de Carnaval, que é de 1919: “Molha em teu pranto de aurora as minhas mãos pálidas./ O espasmo é como um êxtase religioso…”. Qualquer dúvida que possa existir com relação ao tipo de “espasmo” nesse verso se dissipa na carta que Bandeira escreveu a Mário de Andrade em 14 de agosto de 1923, em que confessa, na linguagem epistolar: “[…] o espasmo sexual é para mim um arroubo religioso. Sempre encontrei Deus no fundo das minhas volúpias”. Chamado de “o poeta da delicadeza”, Bandeira é, ao mesmo tempo, e talvez por isso, ardentemente sensual.

Ao lado do ambiente erotizado da Lapa não podia deixar de haver muito trabalho. O amigo que discasse 2-0399 certamente ouviria Bandeira contar, do outro lado, o quanto se divertia traduzindo Tarzan e as joias de Opar. Sim, não só Proust e grandes poetas que ele traduziu, mas até livros de aventuras. Esse trabalho ele fazia em casa, mas todo fim de tarde pegava o bonde para ir à United Press, onde era responsável pelas  traduções de telegramas. Não podia parar suas atividades, afinal, o “quinhentão do montepio” deixado pelo pai não cobria todas as suas despesas – dizia ele.

O poeta ia aceitando o bairro à medida que o tempo passava: “Dentro da noite/ No cerne duro da cidade/ Me sinto protegido”, lê-se em “O martelo”, escrito na Morais e Vale. Acostumava-se aos sons do bairro e já os recebia até mesmo com simpatia. Mais que isso, acolhia-os como lição de vida: […] “Sei que amanhã quando acordar/ Ouvirei o martelo do ferreiro/ Bater corajoso o seu cântico de certezas”, são versos do mesmo poema.

No arquivo de Mario Quintana, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, há um mapa do endereço da Morais e Vale. O documento, sem data, provavelmente é de 1935, quando Quintana morou no Rio e trabalhou na Gazeta de Notícias. Os dois se encontraram nesse ano, e pelo traço do desenho vê-se que Bandeira quis explicar ao poeta gaúcho, solteiro de outra estirpe, como chegar à sua casa de morador sozinho.

Quintana não ficaria muito tempo; em 1936 estaria de volta a Porto Alegre. Nem esperou para ver de perto as homenagens ao amigo pelos seus cinquenta anos de vida, comemorados, entre tantos eventos, com o lançamento de Estrela da manhã, em 1936, ocasião em que Drummond escreveu a “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”:

[…]

 

Tua violenta ternura,

tua infinita polícia,

tua trágica existência

no entanto sem nenhum sulco

exterior – salvo tuas rugas,

tua gravidade simples,

a acidez e o carinho simples

que desbordam em teus retratos,

que capturo em teus poemas,

são razões por que te amamos

e por que nos fazes sofrer…

Certamente não sabias

que nos fazes sofrer.

 

[…]

Da Morais e Vale Bandeira só sairia em 1942, para morar no Edifício Maximus (não deixava por menos, dizia a Mário de Andrade), na praia do Flamengo 122, apto. 415. A mudança inspiraria a “Última canção do beco”, datada de 25 de março de 1942: “Beco das minhas tristezas,/ Das minhas perplexidades/ (Mas também dos meus amores,/ Dos meus beijos, dos meus sonhos),/ Adeus para nunca mais!”

Assim o poeta se despediu da Lapa. Quanto a nós, dele nos aproximamos mais a cada 19 de abril. De preferência, lendo em voz alta o eterno “Manuel Bandeira faz novent’anos”, de Drummond, que em outra ocasião escreveu:

Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira

Teu nome é para nós, Manuel, bandeira.

Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS.

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