Visibilidade
Bernardo Carvalho
09.12.15
No documentário Chico - Artista Brasileiro, de Miguel Faria Jr., o compositor afirma que a Bossa Nova era uma música de elite, dificilmente poderia ser criada hoje. De elite, claro, mas também de exceção. Por que a exceção não cabe nesse mundo onde tanto se alardeia que tudo cabe e que tudo pode afinal existir e ser visto? Por que ela é imediatamente desautorizada?
Melancolia da falta de respostas
Bernardo Carvalho
25.11.15
Federico García Lorca dizia que sua peça O Público era irrepresentável. Nem por isso deixaram de contradizê-lo e de representá-la. Para além do gosto do desafio, há a explicação do cânone. Lorca é um dos maiores dramaturgos espanhóis do século vinte, um autor incontornável, e O Público, um texto tão radical quanto ambíguo, paradoxal e enigmático, a primeira peça na qual o poeta trata abertamente da homossexualidade.
Deus não sabe rir de si
Bernardo Carvalho
11.11.15
O que o perverso está dizendo é que ele está mais próximo de Deus do que dos homens, a verdade está com ele, pois só obedece aos seus instintos. Acontece que, como na lei de Deus, também há uma contradição de base na lei dos instintos e é essa contradição que a obra de Sade escancara, de modo a tornar-se trágica: se o meu instinto diz que devo seguir meu prazer para além de todos os limites, até o assassinato, por exemplo, também tenho que pressupor que os outros ao meu redor, seguindo seus próprios instintos, também poderão me matar por prazer.
Neopopulismo
Bernardo Carvalho
28.10.15
Nesse novo populismo impulsionado pela internet, a naturalidade do lugar-comum subjuga o pensamento crítico, sob a batuta de oportunistas que se fazem passar por justiceiros e representantes da voz e do gosto do leitor contra a arbitrariedade das exceções, contra o elitismo de supostas igrejas, contra tudo o que sai da linha e parece incompreensível, demasiado irregular, estranho ou extraordinário. O resultado é menos democrático do que parece.
Encontro com um editor de direita
Bernardo Carvalho
14.10.15
Acho que era Kant quem dizia que ninguém pensa sozinho. E o que acontece quando a burrice passa a imperar? Alguém dirá que a burrice sempre imperou. Prefiro achar que nem sempre. Até muito recentemente, muito da nossa burrice coletiva se mantinha circunscrita ao isolamento da esfera privada. Ou pelo menos ainda não tinha encontrado os canais públicos para alardear sua hegemonia.
Terceira parábola
Bernardo Carvalho
30.09.15
Que lógica é essa que aplaude os lançamentos sucessivos de novos modelos de telefone totalmente dispensáveis, enquanto países de todo o mundo dizem estar fazendo o impossível para manter em 2 graus centígrados a projeção de aquecimento global? O que passa pela cabeça de quem corre à loja do fabricante de telefones, ávido pelo novo modelo, e ao mesmo tempo diz zelar pela salvação do planeta?
A lei do mercado
Bernardo Carvalho
15.09.15
O cineasta português Miguel Gomes concebeu As Mil e Uma Noites, dividido em três "volumes", com base em histórias e personagens reais, se apropriando da estrutura narrativa do clássico para contar o presente. Os contos se passam em aldeias e periferias portuguesas, falando de gente que não tem trabalho nem o que comer. É um filme estranho, híbrido, excessivo, irregular, às vezes engraçadíssimo, às vezes triste, às vezes longo demais. Mas é a melhor resposta à crise e aos lugares-comuns disfarçados de bom senso.
Europa
Bernardo Carvalho
02.09.15
Eastern Boys (2013), de Robin Campillo, é um filme de um autor disposto a se embrenhar em uma zona radical de desconforto, de onde não se sai ileso. Aqui a experiência do desejo (a possibilidade do encontro e do reconhecimento, como iguais, entre duas pessoas de mundos completamente diferentes e em princípio incompatíveis) acaba reconfigurando os papéis e a própria ideia de família e de integridade, possibilitando a integração e a convivência com o outro.
O Brasil acabou?
Bernardo Carvalho
19.08.15
A solução de Oswald de Andrade é um slogan imperativo e publicitário: “Somos todos antropófagos”. Somos? O que nos une é devorar a cultura alheia e degluti-la em formas renovadas e revigoradas, locais. Isso num país de analfabetos. É brilhante, mas não faz sentido. É uma frase de efeito que vingou a ponto de continuar sendo repetida até hoje, como um coringa, sempre que é preciso atribuir alguma graça e inteligência ao artifício da identidade nacional.
Cães
Bernardo Carvalho
05.08.15
Tentei abrir a boca do cão e tirar de lá de dentro o bicho que já não gritava nem se mexia. Em vão. Desci pro meu quarto com a culpa de ter matado o pássaro – ou pelo menos de ter criado as condições de possibilidade para que isso acontecesse.