Bernardo Carvalho

Só pra saber

Bernardo Carvalho

22.07.15

Se eu fosse uma criança recém-chegada ao Brasil, ia querer saber: Quem foi que pôs Eduardo Cunha na presidência da Câmara? É uma pergunta simples. E eu não ia parar de perguntar até que me explicassem como é que se faz política no Brasil. Votaram contra a corrupção do PT? Então, me expliquem como é que se combate corrupção com corrupção?

Pelo sim, pelo não

Bernardo Carvalho

08.07.15

Se ainda é cedo para vaticinar o destino da Grécia e da Europa, uma coisa ficou clara com o quiproquó que precedeu o referendo: as coisas há muito já não estão no lugar que antes lhes atribuíamos. Um jornal de esquerda, como o Libération, acusa de irresponsável um governo de esquerda e toma o partido dos credores, que por sua vez são associados por um jornal liberal, o The New York Times, a abutres tecnocratas. E isso não é nada, em termos de lógica, se comparado ao fato de um partido da esquerda radical, como o Syriza, governar numa coalizão com a extrema direita nacionalista.

“Não corrijo, se arranje”

Bernardo Carvalho

24.06.15

Mário de Andrade se tornou uma espécie de parceiro involuntário contra a obsessão por uma identidade nacional que informava tudo o que se queria fazer respeitar na cultura brasileira da minha juventude. Todo mundo evocava e ecoava Oswald de Andrade como o gênio da raça. E eu batia palmas, encantado com a genialidade publicitária de frases de efeito como “só a antropofagia nos une”. Até começar a desconfiar daquilo tudo, daquela alegria, e de que talvez a antropofagia não me unisse a ninguém.

Os bardos da hora

Bernardo Carvalho

10.06.15

Leio na The New Yorker que não é possível entender o movimento jihadista sem conhecer poesia e, especificamente, a poesia árabe clássica. Para quem ainda não sabia, os jihadistas são os bardos da hora. Ahlam al-Nasr é uma jovem poeta e militante síria, defensora incendiária do EI, que os jihadistas recitam em vídeos na internet, como se entoassem hinos, durante momentos de confraternização, quando não estão degolando ou queimando reféns vivos.

Livros de colorir

Bernardo Carvalho

27.05.15

Livros de colorir não são tão diferentes de outros títulos que costumam frequentar as listas de best-sellers. Até prestam um serviço de esclarecimento a quem ainda não compreende o mercado de livros. Quando Paulo Coelho, na Feira de Frankfurt, faz o elogio da Amazon contra as editoras, fala em nome do oportunista que segue a favor do vento. O que enoja é ver Juergen Boos, diretor da feira, olhando para Coelho como uma criança no colo de Papai Noel.

Realismo e desejo

Bernardo Carvalho

13.05.15

Assisti à montagem de Ivánov, de Tchekhov, dirigida por Luc Bondy, em Paris. A encenação era irregular, mas alguma coisa no texto me fez perder o pé. Tinha a ver com o amor e o desejo. A grandeza do realismo de Tchekhov vem da capacidade de fazer o mundo falar pelas suas complexidades, por ambiguidades e contradições. A compreensão do realismo literário hoje, ao contrário, foi reduzida a um modelo sucateado, a serviço de uma estratégia de identificação, com claros objetivos comerciais.

Antropologia de si

Bernardo Carvalho

30.04.15

Karl Ove Knausgaard, consagrado mundo afora como o "novo Proust", narra a própria vida e sua relação com o pai violento e alcoólatra em Minha luta. Em meados do século passado, outro escritor também se propôs a criar uma obra a partir da descrição radical de si mesmo, mas com resultados opostos. Michel Leiris publicou A idade viril em 1939, e a radicalidade vinha do avesso de um processo de identificação imediata com o leitor.

“Pra que cantar canções que nunca vão te ouvir?”

Bernardo Carvalho

15.04.15

Passei as últimas semanas ouvindo o novo disco de Sufjan Stevens, Carrie & Lowell. Não sei mais o que fazer com tanta tristeza. O milagre do pop é transformar as maiores platitudes em revelações. Nesse disco, não há concessão artística nem apetrechos; Stevens corta no osso. A voz, o banjo e o piano servem apenas para depurar e simplificar, para dizer o que deve ser dito, por mais herméticas que possam ser as palavras.

Desmancha-prazeres

Bernardo Carvalho

01.04.15

Está em cartaz no Jeu de Paume, em Paris, uma retrospectiva da fotógrafa americana Taryn Simon. Destaca-se uma série composta por retratos coloridos de pessoas que foram incriminadas e condenadas por engano, graças ao uso da fotografia como prova. Num mundo sobrecarregado de imagens e cada vez mais propenso à ambiguidade dos discursos, não faltam razões para desconfiar de tudo o que se faz passar por simples, direto, fácil e imediato.

Domesticação da literatura

Bernardo Carvalho

18.03.15

A pior crítica é aquela que revela mais sobre o crítico do que sobre o que ele critica. Não é menos ruim a crítica que se pauta pelo funcionalismo mercadológico e que, em seu convencionalismo previsível de guia de consumo, não consegue conceber que a literatura dependa da liberdade do risco. Costumam ser dessa ordem as resenhas de Michiko Kakutani, crítica do The New York Times, e é o caso em especial da que ela escreveu sobre o mais recente romance de Kazuo Ishiguro, The Buried Giant.