Domesticação da literatura

Colunistas

18.03.15

A pior crítica é aquela que revela mais sobre o crítico do que sobre o que ele critica. Deve vir daí a relação ambígua e paternalista que essa crítica em geral estabelece com a autoria, como se a resenha fosse uma queda de braço com o autor e a autonomia intelectual do crítico dependesse do rebaixamento da obra. Não é menos ruim a crítica que se pauta pelo funcionalismo mercadológico e que, em seu convencionalismo previsível de guia de consumo, não consegue conceber que a literatura, sendo mais do que um produto, dependa antes de mais nada da liberdade do risco.

O escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro

Costumam ser dessa ordem as resenhas de Michiko Kakutani, crítica do The New York Times, e é o caso em especial da que ela escreveu sobre o mais recente romance de Kazuo Ishiguro, The Buried Giant (O Gigante Enterrado): “O romance de Ishiguro é um conto de fadas excêntrico, de mão pesada, com uma barafunda de histórias tiradas de Beowulf, das lendas arturianas e de uma variedade de tradições populares. Narrado numa linguagem pomposa e formalista, com a pretensão presumida de evocar tempos distantes, o romance se passa numa Grã-Bretanha mítica, que faz lembrar tanto O Senhor dos anéis como Game of Thrones.  (…) No lugar do narrador pouco confiável que tantas vezes ele usou no passado, Ishiguro vai do ponto de vista de um personagem a outro, mantendo a prosa canhestra ao longo de todo o romance, com uma vaga inflexão de arcaísmo forçado, mais amaneirado do que convincente”.

Não li o romance e não posso dizer se é bom ou ruim. É possível que seja péssimo (o crítico James Wood, da The New Yorker, também fala mal do livro na edição desta semana da revista). Mas a previsibilidade da crítica de Kakutani salta aos olhos. É uma crítica que se poderia fazer sem ler o livro, a priori, por preconceito; uma crítica incapaz de sujar as mãos e de arriscar um milésimo da reputação que Ishiguro, autor de clássicos contemporâneos que também foram grandes sucessos de público, como Os resíduos do dia, está disposto a pôr em jogo quando decide escrever uma distopia em forma de “fábula arturiana”, um flerte com o vulgar e o popular, incompatível com a literatura respeitável com a qual ele se fizera reconhecer em seus primeiros livros.

Sem nem mesmo saber se o romance é ou não o lixo que a crítica descreve, dá pra dizer, pelo menos, que estamos diante de um escritor de verdade, cuja coragem só faz estreitar ainda mais o escopo da resenha, por oposição, pondo em dúvida a inteligência da crítica, como se a obtusidade não lhe permitisse cogitar que o risco de leituras de primeiro grau como a sua já tivesse sido objeto das ponderações do autor antes de fazer suas escolhas.

Ao lhe perguntarem sobre um livro decepcionante ou supervalorizado, num questionário proposto pelo The New York Times por ocasião do lançamento do romance nos Estados Unidos, Ishiguro respondeu o seguinte: “Não desejo citar títulos. Mas muitos livros circulam com o endosso delirante de amigos ou antigos professores do autor.  É preciso dar um basta aos elogios solicitados. É pura corrupção e nepotismo. Enganam o leitor e impedem que os livros certos cheguem à superfície”.

A resposta de Ishiguro me fez pensar num livro que li recentemente e do qual gostei bastante, mas que não teria comprado se não fosse por uma resenha que exaltava sua extraordinária originalidade. Hall of Small Mammals (Ala dos Pequenos Mamíferos), coletânea de estreia do americano Thomas Pierce, é de fato um livro simpático e inventivo, mas que, antes de esbanjar uma originalidade extraordinária, obedece a parâmetros que, de tanto lermos formas semelhantes, acabamos reconhecendo como resultado da influência de décadas de oficinas de criação literária. Ao contrário do que poderia pressupor uma originalidade extraordinária (por isso mesmo sujeita ao erro, ao excesso e ao fracasso), tudo está em seu lugar, finamente ordenado.

É injusto pegar para Cristo um livro de estreia que ainda por cima você achou bom. É covarde usá-lo como exemplo do que você não quer ler em literatura, como fazem os críticos que se deixam influenciar, para o bem ou para o mal, pelo entorno, pelo que cerca o livro, pela imagem pública do escritor e pelo que os outros dizem ou não dizem da obra dele, em vez de se ater à obra. Mas é preciso atribuir algum rigor às palavras. Uma extraordinária originalidade me faz pensar em coisas inéditas, que nunca li. O problema da domesticação da literatura pelo mercado ou pelas escolas é circunscrever essa originalidade ao reconhecimento e à reprodução de uma excelência palatável e consumível, sendo que, para começo de conversa, o próprio conceito de excelência, num universo altamente subjetivo como o da literatura, é dos mais cambiáveis e questionáveis.

O academicismo e o elogio das convenções são os primeiros e os últimos recursos para quem não tem capacidade nem condição de julgar entre o ruim e o estranho. Já não precisamos de escolas para formar escritores. Precisamos, antes, de escolas que abram a cabeça dos leitores para o inesperado, para o dia em que tiverem diante dos olhos o que nunca leram antes, o que não poderão reconhecer nem classificar com os parâmetros disponíveis.  

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