Tema: decadência humana

Cinema

16.03.15

(Albert Maysles morreu em 5 de março, aos 88 anos. Um de seus documentários mais importantes é Grey Gardens, tema deste artigo. O IMS lançará este ano DVD reunindo Grey Gardens e As Beales de Grey Gardens, filme feito por Maysles com cenas deixadas de fora do filme original).

Não creio que haja alguém que não se choque ao ver Grey Gardens pela primeira vez. O filme, de 1975, retrata um ambiente físico e psicológico degradado, fac-símile do que muitos veem como loucura. Cenário: casa mal conservada e repleta de entulho, localizada no balneário abastado de East Hampton, próximo a Nova York. Personagens: Edith Ewing Bouvier Beale (mãe) e Edith Bouver Beale (filha) – de 78 e 54 anos à época das filmagens –, tão cultas quanto “excêntricas” em porte e estilo. Big Edie e Little Edie, tia e prima de Jacqueline Kennedy Onassis, com frequência se hostilizam de maneira feroz. Não à toa, em 2006 o Ministério da Justiça brasileiro utilizou a expressão “decadência humana” ao descrever a obra.

O documentarista Albert Maysles

Filmado durante seis semanas, o documentário realizado por Albert e David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer foi construído ao longo de dois anos na mesa de montagem, a partir de 50 horas de material bruto. O apelo sensacionalista se afasta graças a uma estrutura sóbria, sem depoimentos explicativos ou narração em off. O passado e o presente das Beales são apresentados por elas mesmas, característica comum aos filmes do cinema direto, do qual Albert e David Maysles eram expoentes. Há, no entanto, um elemento distinto em Grey Gardens em comparação ao restante da obra dos diretores até aquele momento: trata-se de um filme em que os Maysles se assumem também como personagens. Em descrição de Little Edie, “não éramos apenas eu e minha mãe. Os Maysles eram um terceiro elemento e isto traz algo diferente”.

Grey Gardens se estrutura em torno do relacionamento entre mãe e filha; e vê-lo pela primeira vez foi um baque. Como é dito por Hovde: nada acontece. O que até hoje me toca ao assistir a Grey Gardens é o fato de retratar uma escolha, a do retorno à casa para cuidar da mãe. Escolha vista por sua Big Edie como produto direto de um fracasso: as perspectivas comuns às mulheres da geração e da classe social de Little Edie não se concretizaram. A narrativa sutil se dá em torno da tensão entre elas e de sua mútua dependência, em diálogos que constantemente revisitam o passado. Os papéis de mãe e filha se misturam e se invertem. Em contraponto a uma mãe fisicamente debilitada, há o movimento da filha que ainda ensaia ir embora. Mas o único passo concreto nessa direção talvez seja tão incipiente quanto suas danças são amadoras. As oportunidades já perdidas são encenadas para os Maysles ainda como possibilidades concretas.

Ao pesquisar material para a nova edição brasileira de Grey Gardens em DVD, sem surpresa me deparei com textos que questionavam a obra por retratar senhoras, vistas como excêntricas, em um contexto degradante. A mais célebre crítica negativa foi escrita por Walter Goodman no The New York Times, na qual ele utiliza palavras como “grotescas” e “pelancudas” para descrever as Beales. Um show circense, em que os diretores deliberadamente estariam explorando suas personagens. A resposta de Little Edie a Goodman vem em tom semelhante: “Você não quer ver uma pessoa velha cantando ou tendo uma personalidade (…). E nós não vivemos de maneira convencional – e daí? (…) Toda essa falação sobre o fato de o filme ter nos explorado. Nós não exploramos David e Albert, e não fomos exploradas por eles”.

Conscientes no papel de terceiro elemento, os diretores fazem uso da empatia como um método, cujo resultado é o equilíbrio entre observação parcial e a capacidade de não julgar mãe e filha pelas consequências de suas escolhas. Albert Maysles trabalhava como psicólogo antes de se tornar câmera e diretor de documentários. Ainda que Grey Gardens tenha sido realizado em conjunto com outras três pessoas, não consigo deixar de pensar que a sensibilidade com a qual as Beales são retratadas deve muito a ele. Como diz Little Edie ao citar o poeta Robert Frost: “dois caminhos se bifurcavam no bosque amarelo… e ponderando sobre um, tomei o outro, e isso fez toda a diferença”. Talvez não haja outro filme que mergulhe tão fundo nessa diferença.

As citações deste texto foram extraídas do filme e também de materiais presentes no livro Grey Gardens, organizado por Sarah e Rebekah Maysles e que compila fotos, notas de produção, reportagens, transcrições de debates, referentes à produção e ao lançamento da obra nos EUA em 1975. 

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