O livro das contradições
Bernardo Carvalho
04.03.15
A revelação da identidade do inglês encarregado pelo Estado Islâmico de decapitar reféns ocidentais deixou muita gente perplexa. Ao que parece, o ódio do ex-universitário londrino contra o Ocidente foi nutrido pelo tratamento que recebeu anos atrás pelo serviço antiterrorista britânico. Em seu livro, o jornalista irlandês Patrick Cockburn escreve: "Foram os Estados Unidos, a Europa e seus aliados regionais na Turquia, na Arábia Saudita, no Catar, no Kuwait e nos Emirados Árabes Unidos que criaram as condições para a ascensão do Estado Islâmico”.
Epitáfio
Bernardo Carvalho
11.02.15
Amigos me disseram que Birdman, de Alejandro Iñárritu, era “contra tudo isso que está aí”, ou seja, o mundo das celebridades, das mídias sociais, da frivolidade e da superficialidade. Mas o filme é justamente “tudo isso que está aí”, repleto de personagens postiços que têm crises existenciais numa velocidade histérica. Um bom contraponto a Birdman é a exposição "Silence", de On Kawara, em cartaz no Guggenheim.
O ovo da serpente
Bernardo Carvalho
28.01.15
O historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) vinha de uma das famílias judias mais ricas da Alemanha e foi mandado para o sanatório Bellevue, na Suíça, depois de ameaçar matar a mulher e os filhos a tiros. Diagnosticado como esquizofrênico maníaco-depressivo, quis eliminar a família para evitar que fossem perseguidos, trancafiados em prisões secretas, torturados e assassinados, o que retrospectivamente teria feito dele também um visionário.
Guerrilha de ideias
Bernardo Carvalho
14.01.15
Tanto o quadrinista Joe Sacco como o escritor Teju Cole são nomes respeitados em suas áreas. Mas, em seus comentários sobre o atentado ao Charlie Hebdo, é como se eles se dirigissem a um público ignorante e ingênuo, que ainda acreditasse num mundo livre de contradições, dividido entre mocinhos e bandidos. É como se atribuíssem ao Ocidente a mesma uniformidade que os islamófobos atribuem ao Islã.
Um homem se retira
Bernardo Carvalho
17.12.14
O poeta Mark Strand morreu há duas semanas, aos 80 anos, em Nova York. Seus poemas supõem a integridade e, também, o desaparecimento. É o contrário de um mundo de fantasmas infantilizados que, fascinados pela própria imagem, insistem em reproduzir e replicar o vazio imóvel, impotente e histérico da sua aparência.
Preto não entra
Bernardo Carvalho
03.12.14
Em poucos segundos, a cadelinha Jack Russell já estava engalfinhada com o pobre cachorro preto. O dono, com a caipirinha na mão, virou-se para mim e disse, com um sorriso maroto de cumplicidade: “Ela não deixa preto entrar na festa”. O que faz um sujeito supor que outro branco, por ser branco, deve ser necessariamente racista, como ele?
Militância
Bernardo Carvalho
19.11.14
Por pouco não fui atacado em Bruxelas por dois rapazes árabes. Eu caminhava com meu companheiro, e um dos rapazes começou a nos xingar em inglês. Ouvi uma vez, duas, três vezes. E aí me irritei. Se não fosse por dois policiais, poderia ainda estar em algum hospital belga. A militância mostra que a batalha nunca está totalmente ganha. Quanto maior a visibilidade das minorias, mais necessidade haverá de protegê-las da violência.
Filmar o êxtase
Bernardo Carvalho
05.11.14
O incensado diretor canadense Xavier Dolan não ajuda. O que ele tem a dizer em entrevistas é em geral afetado, pretensioso e fútil. Entrei para ver Mommy pronto para sair no meio do filme, mas em menos de dez minutos já queria ficar para a sessão seguinte. Trata-se de uma obra-prima
A mesma água que mata a sede é a que afoga
Bernardo Carvalho
22.10.14
Difícil é pensar sem claque. É aí que está a possibilidade de um pensamento independente de verdade, nesse escândalo sem defensores de primeira hora, nessa irrupção sem seguidores (à esquerda e à direita), nessa coragem que é ao mesmo tempo antevisão e suicídio, ato de loucura e gesto artístico. São raros os casos de pensadores desse calibre. Pasolini era um deles.
O espectador furioso
Bernardo Carvalho
08.10.14
Há alguns meses, fui atacado em um jornal francês, por causa de uma peça que escrevi. Não vou defender a tese de que a exasperação da crítica tem necessariamente a ver com o mérito provocador das peças. Também não sou dos que acham que crítica tem que ser “construtiva”. Costumo me manifestar com veemência contra as coisas que abomino, torcendo para que desapareçam.