Bernardo Carvalho

A neve é um casaco esplêndido e quente

Bernardo Carvalho

06.02.12

A cidade está coberta de neve, oito graus negativos. Começo a ler o pequeno volume, recém-publicado em inglês, com as "Histórias de Berlim", de Robert Walser (tradução de Susan Bernofsky, ed. New York Review Books). O escritor suíço viveu aqui entre 1907 e 1913.

Transgressão e visibilidade

Bernardo Carvalho

30.01.12

Por coincidência, os dois filmes que vi durante minha passagem recente por Bruxelas tratavam de sexo e dinheiro. E um parecia ser o desdobramento moral do outro. Shame, de Steve McQueen, acompanha a rotina de um executivo viciado em sexo, em Nova York. Sleeping beauty, de Julia Leigh, conta a história de uma jovem universitária, na Austrália, que é contratada para dormir, sob efeito de soníferos, com velhos impotentes que se servem do seu corpo desfalecido para exercitar, sem constrangimento nem penetração, o que lhes resta de fantasia.

Bonde 51

Bernardo Carvalho

23.01.12

Vim parar em Bruxelas com uma trupe de teatro. Estão fazendo ações na rua. Eu os acompanho. É uma espécie de pesadelo. Fico sabendo que vão se dividir em três grupos: enquanto uma atriz oferece café e bolachas aos passageiros do bonde 51, que corta a cidade de norte a sul, duas outras se postam no meio do corredor de outro bonde da mesma linha, inamovíveis aos pedidos dos passageiros que querem passar, e um casal de atores se divide entre o bonde e as paradas, ambos enrolados, como múmias mal embalsamadas.

Arquitetura imaterial

Bernardo Carvalho

16.01.12

De repente, a própria imponência do prédio (a dimensão inumana, mais pra nave extraterrestre do que propriamente pra navio) já não me permitia ver nele outra coisa além das relações entre a arquitetura e o poder. E seria até muito educativo se nas formas se vislumbrasse algum tipo de crítica ou ironia. Os arquitetos dizem que todo o prédio foi concebido em função da música e da acústica (a sala principal deve muito à Filarmônica de Berlim, desenhada por Hans Scharoun, em 1956). Mas no lugar da música eu só via - maravilhado, tenho que concordar (e não é esse o objetivo?) - um monumento ao poder.

Intercâmbio cultural

Bernardo Carvalho

06.01.12

Depois de nove meses gozando do sentido de ordem dos alemães, fui passar o Natal no Rio. E o que é que nove meses, a levar pito de velhinhas toda vez que atravessava a rua com o sinal de pedestres fechado (e sem nenhum carro vindo de lugar nenhum) ou pegava a ciclovia na contramão ou atravessava na faixa de pedestres sem desmontar da bicicleta, fizeram comigo? Já não sou capaz de ver nada além de sexo nas ruas (e ciclovias) do Rio.

Vício e virtude

Bernardo Carvalho

12.12.11

No famoso prefácio a sua peça Senhorita Júlia (1888), Strindberg escreveu que "o ?vício' tem um reverso que muito se assemelha à virtude". É um pensamento insuportável num mundo de certezas perdidas como o nosso. Queremos crer, desesperadamente, que o vício seja mesmo o oposto da virtude. Queremos uma tábua de salvação. Vemos o vício em toda parte, onde ele não devia estar, e já não sabemos como combatê-lo. O pensamento de Strindberg sobre a semelhança dos opostos é essencial para a compreensão da peça. Mas nós queremos poder voltar a acreditar em alguma coisa.

Amizade

Bernardo Carvalho

05.12.11

Não há autor no mundo que não tenha se sentido alguma vez injustiçado. O reconhecimento está sempre aquém da autoimagem, que é uma forma natural de defesa contra a insegurança. E o ressentimento é um lugar-comum a evitar. Mas há circunstâncias excepcionais em que a violência e os horrores da realidade terminam por transformar, mesmo entre as pessoas mais fortes, essa semente em loucura.

Diálogo com taxista parisiense – por Bernardo Carvalho

Bernardo Carvalho

28.11.11

Passageiro: vou para a rua du Bourg Tibourg, no Marais, por favor. Motorista: Onde fica? Passageiro: No Marais. Motorista: Você sabe que o Marais é um bairro de gays? Passageiro: É? Motorista: Você é gay? Passageiro: Sou. (Mantendo uma das mãos no volante, o motorista se vira para trás e olha para o passageiro, com uma expressão de felicidade e escárnio.)

Palácio de Lágrimas

Bernardo Carvalho

10.10.11

Minha amiga foi "comprada" pela RFA. Já no final da adolescência, tinha decidido deixar a qualquer preço a Alemanha Oriental. E não sabe explicar por que não foi presa quando pediu para ir embora (...). Os pais, que eram simples trabalhadores, tampouco foram perseguidos. Apenas ela caiu em desgraça. Trabalhava num teatro. Passou a lavar o chão. Esperou alguns anos até os advogados ocidentais que trabalhavam pelos dissidentes da RDA comprarem seu passe. A Alemanha Oriental precisava de dinheiro. E mantinha um encarregado oficial para negociar com o ocidente a liberação de dissidentes e presos políticos.

Ver o horror

Bernardo Carvalho

03.10.11

Antes de ser transformado em campo de extermínio, Auschwitz servia de caserna para o exército polonês. Os pavilhões de tijolos foram adaptados ao horror e hoje permanecem limpos e impecáveis, numa estranha paz, entre árvores e gramados bem-cuidados. Birkenau é muito mais impressionante. Já nasceu como campo de extermínio. E não deixa dúvidas quanto a sua função original. Não é preciso nenhuma exposição, nenhuma imagem. A vastidão do campo e a arquitetura falam por si. A morte e o horror transparecem no silêncio dos pavilhões de madeira e nas ruínas das câmaras de gás.