Cimento, papel e cinza

Artes

19.05.15

Sem título. Ivens Machado, 1970.

Conheci Ivens Machado há mais de vinte anos, quando passou a frequentar a casa de meus pais. Vinha quinzenalmente discutir trabalhos de escultura e instalações que minha mãe desenvolvia na época. Esses encontros duraram cerca de seis anos com algumas interrupções. No início eu acompanhava as conversas pelas bordas, apenas observando seu efeito no processo e no trabalho realizado. Rapidamente me interessei pela atmosfera, pelo tipo de interlocução que se estabelecia ali, e passei a participar mais de perto. Havia um modo tranquilo, às vezes álacre, sempre agudo de intervir e comentar, sugerir e provocar.

Quando fiz dezoito anos, meu presente de aniversário foi um encontro de supervisão com Ivens. Pela primeira vez reuni um grupo de exercícios que me pareciam criticáveis do ponto de vista da arte contemporânea, mas que apontavam em direções tão diversas quanto contraditórias. Ivens sublinhou a importância do contato com o espectador, do vazio e do excesso como elementos estruturantes daqueles exercícios, e conversamos bastante durante alguns meses sobre esses dois modos de operar. Sem me forçar ou induzir a optar entre um ou outro caminho, propôs uma nova série de exercícios que me fizeram aprofundar as  duas direções. Os trabalhos eram ainda incipientes e talvez ingênuos, o que não impediu Ivens de analisá-los com seriedade e com uma generosidade nada complacente, levantando questões que me acompanham até hoje. Minha videoinstalação O livro de silhuetas (2004) foi pensada a partir de questões sinalizadas por ele muito antes que eu pudesse percebê-las surgindo. Em 2012, enquanto preparava uma individual na Galeria Mercedes Viegas, contei a Ivens que a exposição se chamaria Antes que um pensamento se conclua, mas que o seu verdadeiro nome era Puxando o fio partido dos anos setenta, pensando em Ivens Machado, já que os trabalhos eram todos eles desentranhados de um dos cadernos com pautas desviadas que Ivens realizou nos anos setenta. Ele apenas riu um largo riso e disse que não era importante, que estava cansado, e que gostava das minhas pautas porque não eram apenas partidas, eram descabeladas.

Série Machucados e curados. Ivens Machado, 1980.

A sensibilidade estética de Ivens se expressava de modo franco e direto. Independentemente do material ou da mídia utilizada, quando reconhecia algo que lhe parecia potente, fazia questão de pontuar, de admirar. Fosse o que fosse, certa curvatura de enseada, o dorso de um operário trabalhando, uma escultura povera que o havia impressionado. A mesma intensidade dos elogios comparecia na irritação com a falta de vigor de muitos artistas contemporâneos. Livre de preconceitos e poses, ficava profundamente tocado pela irrupção de um acontecimento estético, capacidade que existe virtualmente em cada um de nós, mas que em geral se perde por atrofia do sensível.

Ao perdermos Ivens, perdemos também esse precioso e cada vez mais raro modo de “ver com olhos livres” a que se referia Oswald de Andrade, e que, no caso dele, Ivens, provinha de uma relação vital com a potência das formas e com a beleza do informe. Dessa relação advinha sua arte, que em vários momentos lembra, no misto de rudeza e graça, certas manifestações pré-históricas.

Sem título. Ivens Machado, 1994.

Dito de modo mais vulgar, Ivens “tinha olho”. Parece pouca coisa, mas é algo que infelizmente falta a grande parte de nossos jovens artistas e críticos. Basta pensar na frouxidão visual de certas pinturas atuais, de artistas que se pretendem herdeiros do construtivismo ou do expressionismo abstrato.

Ivens gostava de se apresentar como um grande intuitivo, e o era de fato. Sua relação com o artístico não se dava através da informação, da história ou da teoria da arte, sua inteligência plástica surgia do contato com a brutalidade de certas “formas de ser”, para usar a expressão de Catherine Malabou. Criava no contato com a pulsão violenta da forma, com a energia e a beleza nua dos materiais pobres. Interessava-se pela possibilidade de manifestá-los no mundo como presença, e fazia isso não para denunciar ou imantar a pobreza ou a crueldade do mundo, mas para desentranhar, liberar forças que só são visíveis quando adquirem peso e se precipitam no tempo e no espaço.

Fluidos Corretores. Ivens Machado, 1978. (Coleção Gilberto Chateaubriand / MAM-Rio)

O convite de sua individual na Galeria Saramenha, em 1987, vinha com um pequeno texto do próprio Ivens que falava sobre a dimensão arcaica e improdutiva da criação. Situava o trabalho “em um tempo onde o prazer escorre pelas coisas sem objetivo”, dizendo-se avesso à posição de reprodutor, e completava: “A paternidade não me pré-ocupa, embora reconheça sua existência. Não estou circunscrito pela razão ou pela informação e prefiro o fazer difuso e assistemático. Essencialmente o trabalho é ‘órfão’ e ‘impotente’, não aspiro a coito definitivo.” 

Embora trabalhasse com materiais rudes e por vezes ásperos e pontiagudos, seus objetos nada têm de inacabado, de borrado ou de sujo, também não há neles nenhuma demagogia ou vontade de fazer o material transportar a fórceps alguma metáfora social. Seus trabalhos são eloquentes e remetem a algo fundamental mas que não sabemos definir plenamente. Nos raros momentos em que a forma é alçada à condição de imagem interpretável, como em “Mapa Mudo” (1979), há uma crispação crítica que não deixa esgotar as possibilidades de leitura.

Mapa mudo. Ivens Machado, 1979.

Por outro lado, essa imagem do artista espontâneo e instintivo acabou por sombrear sua sensibilidade crítica e a abertura para apreciação de processos alheios. Nascido em Florianópolis, Ivens chegou ao Rio em 1965 como jovem professor de artes. Criou uma escolinha para crianças em Laranjeiras nos anos setenta, projeto ao qual se referia com frequência e que certamente teve impacto sobre suas opções por materiais baratos e acessíveis, sobretudo quando olhamos os trabalhos com caixas de papelão e folhas de jornal.

Numa apreciação mais aprofundada de sua ação formadora, Ivens será lembrado com muita saudade por todos aqueles que o tiveram como interlocutor crítico, e me refiro aqui tanto àqueles que se tornaram artistas quanto àqueles que investiam em pesquisas artísticas sem a pretensão de fazer parte do sistema. Ivens, aliás, não fazia diferença entre artistas profissionais e amadores, o que interessava era a contundência do que se produzia e a disponibilidade para radicalizar processos e procedimentos.

Sem título. Ivens Machado, 2002.

Além do arrebatamento das formas que fazia surgir de materiais ordinários, mas de complicado manuseio, impressionam também no seu trabalho as alianças surpreendentes entre o frágil e o brutal, o peso da matéria e a leveza das formas. Trabalhava, com a mesma desenvoltura, tanto com pequenos papéis quanto com toras de madeira, vergalhões de ferro e concreto armado. Mesmo suas grandes formas escultóricas, em geral produzidas por acúmulo, pressão e encaixe trazem uma componente de fragilidade e risco, sem a qual tudo facilmente se reduziria ao exercício estilístico do grotesco.                                                   

Absolutamente honesto consigo mesmo e com sua produção, Ivens teve uma vida artística mais tortuosa do que merecia. Falava com um misto de arrependimento e ironia de suas brigas de juventude com alguns críticos brasileiros. O fato é que, apesar da importante projeção nacional e internacional, mais de uma vez Ivens se viu obrigado a destruir suas obras. Sobretudo nos últimos anos, queixava-se da falta de uma estrutura com a qual pudesse contar para preservar suas esculturas, instalações e desenhos. Esse fato por si só tão lamentável também diz algo sobre o momento contraditório da arte brasileira. Enquanto proliferam megagalpões, galerias-ostentação, e fala-se euforicamente da internacionalização e do boom artístico, acervos e obras fundamentais vão se degradando, e desaparecerão por falta de interesse ou cuidado adequado.

No ambiente atual em que boa parte da arte brasileira se debate entre estranhas hierarquias culturais, oscilando entre a frivolidade de um devir-perfumaria e a ilusão de felicidade de uma missão sociológica, a figura de Ivens, seu modo de vida e sua obra simbolizavam uma resistência genuína. Resistência ao esvaziamento estético e ao grande jogo das cartas marcadas e das figurinhas repetidas ad infinitum. Resistência à coqueteria que sobredetermina a circulação e a visibilidade dos artistas. Suas encrencas, seu desregramento, seu ressentimento, isso tudo, muito mais do que a configuração de uma personalidade intensa ou indócil, marcava um lugar artístico no mundo e um modo de ser contemporâneo.

Ivens manteve-se absolutamente fiel à sua tormenta, a força, a violência das formas que criava, a estridência dos seus materiais prediletos integravam esse modo caótico e drástico de viver, de não caber em si e desvairar. Suas obras parecem falar de uma ancestralidade que se comunica com a infância, uma plasticidade singela e franca, mas que também pode repentinamente reverter para a monstruosidade desesperada de um desejo em forma bruta, que talvez seja o nosso único totem possível.  

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