Como o céu desabou sobre a China

Cinema

18.05.13

Tian zhun ding

(Cannes) O que de verdade cresce na China, a economia ou a violência? Ou a segunda em consequência da primeira? pergunta-se Jia Zhangke em seu novo filme, no original Tian zhun ding, algo como Caído do céu ou Presente dos céus; no título escolhido para distribuição internacional, A touch of sin (Um toque de pecado).

São quatro histórias que se entrecruzam (e de quando em quando são comentadas por trechos de clássicas óperas chinesas), inspiradas em fatos reais e ocorridas em diferentes províncias chinesas “é impossível não se sentir mal com a enorme quantidade de relatos de incidentes violentos na internet”.

Na fábrica, o jovem trabalhador desvia a atenção da máquina para o novo GPS no telefone do companheiro ao lado e a lâmina do mecanismo corta seu dedo. Ele terá de ficar 15, 20, talvez mais dias, sem poder trabalhar. E enquanto isso, determina o diretor da fábrica, receberá o salário do companheiro que desrespeitou as normas de serviço, parou para conversar no meio do trabalho e provocou o acidente. Responsável pelo ocorrido, terá de trabalhar de graça para manter o operário acidentado e compensar o prejuízo da fábrica com um trabalhador a menos.

Na sauna, um cliente exige ser massageado pela recepcionista. Como ela não o atende, tira do bolso um maço de notas e passa a agredir a recepcionista com dinheiro, usando o maço para esbofeteá-la.

Na mina, um trabalhador revoltado com a corrupção, depois de seguidos protestos contra o desvio de dinheiro e o não atendimento dos benefícios prometidos aos mineiros e suas famílias, é agredido na cabeça a golpes de bastão pelo segurança do chefe da empresa de mineração que passa a chamá-lo ironicamente de “Sr. Golf”.

No vilarejo em que vive sua família, em visita para o aniversário da mãe e para a festa do Ano Novo, um homem se confessa desinteressado por tudo: no bar, acompanha indiferente uma briga violenta que se segue a uma conversa sobre a Aids trazida pelos estrangeiros; na noite de Ano Novo, dispara seguidas vezes contra os fogos de artifício que anunciam nos céus os primeiros instantes do ano do Tigre. Sente-se bem apenas quando usa seu revólver.

A brutalidade sugerida pelos exemplos acima é quase nada perto daquela efetivamente recebida no instante em que o filme, aceso na tela, desenha o incômodo maior sentido pelo diretor, o caráter inesperado, extremo, cotidiano, de cada uma dessas explosões de violência “numa sociedade em que faltam canais de comunicação, a violência começa a se tornar um meio rápido e eficaz do indivíduo conservar sua dignidade pessoal”.

No centro da cidade, no meio da rua, na frente de um banco, um homem mata um casal para roubar a bolsa da mulher.

O filho acaba de perder o emprego, a mãe não acredita e reclama no celular exigindo que ele mande o dinheiro do mês para a família o filho corta a ligação e se mata num gesto de raiva.

A esposa enganada resolve discutir com a amante do marido, mas não vai sozinha dois homens a acompanham para agredir a mulher com socos e pontapés.

A violência é incômoda e feia. Intencionalmente feia de ver. Nenhum efeito especial para coreografar a coisa bruta e torná-la suportável para os olhos, distanciá-la e fazer dela uma forma abstrata e decorativa ou então justificável para o olhar. É feio o corpo que se arrebenta no chão. Feia a briga no bar. Feia a perseguição e agressão ao motorista que se recusa a pagar para seguir viagem na estrada. Feia a imagem do corpo da vítima de um tiro de fuzil de caça. Feias as imagens que surgem nos noticiários na televisão por trás dos personagens com choques de trens, acidentes em minas, desabamentos de prédios, acidentes em fábricas. A sensação de feiura contamina pouco a pouco a aparente modernidade das fábricas e a elegância dos clubes noturnos para recepcionar investidores estrangeiros ou a nova elite econômica chinesa.

Feia e repentina, a violência explode a todo instante e depois de um certo momento fica no ar, não sai da tela mesmo nos momentos em que tudo parece em calma. Mesmo então instala-se no espectador um mal-estar antecipado, uma espera desconfortável de um próximo incidente brutal que a qualquer instante pode despencar do céu. Tian zhun ding prossegue (em ficção) o que começou (em documentário) em Cidade 24 (24 City, 2008), um registro da “mudança rápida e radical da sociedade chinesa nos últimos 20 ou 30 anos”. Para Zhangke, a mudança impôs um “aumento das diferenças entre ricos e pobres e, em consequência, um crescente descontentamento diante do aumento de riquezas e de injustiças sociais. No tempo em que a economia coletiva reinava, e as pessoas não tinham uma consciência de suas individualidades. As reformas despertaram nas pessoas uma nova consciência de individualidade, ao mesmo tempo em que acumularam problemas sociais: cresceu a desigualdade, cresceu a corrupção. Esses problemas não foram tratados a tempo. Seu acúmulo e uma crescente consciência da liberdade individual criaram um clima de descontentamento. Os chineses esperam cada vez mais mudanças no país”.

Neste quadro, Tian zhun ding pergunta se a violência do dia a dia se transformou numa forma de expressão de uma sociedade em que faltam canais de comunicação, e sugere que discutir a violência abertamente, num filme, talvez seja o único modo de eliminá-la de nossas vidas.

Como se organizasse a programação aproximando filmes com afinidades temáticas, ao lado da realização de Jia Zhangke, e também na mostra competitiva, Cannes exibiu a coprodução (México, França e Holanda) Heli, de Amat Escalante, retrato da barbárie em torno do tráfico de drogas no México. E, lado a lado, três dramas familiares em torno das relações entre pais e filhos adotivos, o francês Jovem e bonita (Jeune et Jolie de François Ozon), a coprodução (França e Iran) O passado (Le passé), de Asghar Farhadi, e o japonês Tal pai tal filho (Soshite chichi ni naru), de Hirokazu Kore-eda. A violência mexicana se perde na busca de uma sofisticação estilística para aumentar o impacto de ações em que um personagem é surrado e outro, enforcado e queimado. A proximidade do filme chinês torna ainda mais evidente o artificial da narração.

Nos dramas familiares, o francês conta de modo elegante e distanciado a história de uma adolescente que se prostitui sem que a mãe ou o padrasto se deem conta. O iraniano (do mesmo diretor de A separação) conta (numa encenação muito falada, e construída à maneira de um filme policial) uma série de conflitos a partir de uma ação amigável de divórcio. O japonês, o melhor dos três, concentra-se num conflito preciso e tira sua força expressiva do exame em profundidade do drama de duas famílias vitimadas por um erro na maternidade: dois bebês nascidos no mesmo dia foram trocados pela enfermeira, que seis anos depois confessa o erro e gera um problema sem solução: desfazer o erro, trocar as crianças trazer para casa o verdadeiro filho ou permanecer  com aquele do qual até então tinham cuidado como filho legítimo?

Um melodrama de um formalismo elegante, o francês, ou outros dois melodramas gentis, como uma pausa (ou um entreato?) depois da nada gentil imagem dos negócios da China.

* José Carlos Avellar é coordenador de cinema do IMS.