Quando uma ideia/vontade cinematográfica deixa de se bastar enquanto um único filme e passa a pedir novas faces estéticas? Fora a questão de mercado e consumo em diferente plataformas, que caminhos conceituais me levaram a uma aventura para além do ritual cinematográfico mais tradicional, me arriscando numa série de web e projeto transmídia? São as perguntas que tento responder aqui – ainda no meio do furacão. Começando pelo começo:
Sou cineasta de formação, e aos 32 anos vivo o limbo de quem não é nem um garboso exemplar da geração internet do século XXI, nem um límpido representante do século XX. Meu primeiro curta, em 2002, montei em moviola 16 mm numa sala da universidade e carreguei as cópias debaixo do braço para festivais e mostras. O terceiro, em 2005, já montei em Final Cut no quarto de casa e podia mandar para festivais em DVDs ou fitas HD. Hoje, um pequeno curta pode ser colocado em HD na web e baixado do outro lado do mundo para exibição imediata.
Se o espanto inicial diz respeito à rapidez do processo de produção e transporte das imagens, o que começa a se mostrar evidente é que também novas formas de narrar e organizar nossas imaginações vão se tornando possíveis dentro dessas dinâmicas e acúmulos narrativos.
Minha história com o projeto Claun começou em 2010, logo após as exibições de A alegria em Cannes. Entre os que elogiavam e os que viam fragilidades no filme, parecia haver uma coisa em comum: a impressão de que o filme muito mais propunha a instalação de um universo do que exatamente narrava uma trajetória dentro dele. Que o mais consistente em nosso trabalho era o encontro com o imaginário e a atmosfera fantástica daqueles personagens, mais do que a fruição por uma trama ali determinada.
Tateando essas impressões, comecei a ir adiante: talvez o que eu estava desenvolvendo com Marina Meliande passasse justamente por ser mesmo mais uma cartografia visual, mágica e simbólica do Rio de Janeiro do que uma “crônica contemporânea” da cidade. A apresentação de um universo e suas várias possibilidades de encenação, sem que necessariamente chegássemos a um arco dramático definitivo, começou a me aparecer como meu gesto mais natural como o realizador de cinema que eu começo a ser, o que nos levou ao formato fragmentado e coletivo visto em Desassossego (2011).
Ainda com isso na cabeça, enquanto lançávamos o filme-coletivo em Rotterdam 2011, comecei então a bisbilhotar os esboços tanto de A fuga da mulher gorila, nosso primeiro longa, quanto de A alegria, investigando se haveria material no entorno dos filmes que pudesse seguir se desdobrando para além da Trilogia Coração no Fogo – num formato episódico, talvez?
Apesar do entusiasmo inicial, alguma coisa na incompletude daquelas narrativas parecia me pedir para permanecer daquele jeito: intocada, em falta. E desisti do atalho. Em janeiro de 2011 comecei a esboçar o que viria a ser o projeto transmídia Claun. Era antigo (desde os tempos da faculdade e misturando minhas memórias infantis nas ruas da Baixada) o meu desejo de investigar o universo dos bate-bolas cariocas – construindo em torno deles algum tipo de narrativa épica e mítica a partir da forma como misturavam religião, carnaval e cultura pop em suas referências e gestos.
Ao começar a mover essas peças na cabeça numa tarde, viajando pela Via Dutra a caminho de Queimados para visitar a família, me veio a impressão de que ao invés de querer narrar algo cujo ciclo ritualístico fosse o da sala de cinema tradicional (onde sentamos por cerca de duas horas e saímos com algo pronto e determinado para digerir), minha vontade era ampliar a construção do sentido do inacabado, do infinito das ruas da cidade e de sua eterna transformação, e também sua circulação pelas telas, casas e espaços da cidade. “Cinema para lan houses“, eu brincava com os amigos.
Indo um pouco além do que testamos em A alegria nesse sentido, eu queria partir para uma cosmologia carioca tão cheia de camadas e rituais quanto as turmas e grupos de bate-bolas da “vida real” me convidavam a testemunhar em sua rotina mágica. Quanto mais eu pensava, mais se ampliava esse tabuleiro amplo de imaginação. Não foi um salto conceitual dos mais difíceis: estava na própria base da cultura dos grupos de bate-bolas (cultura em rede dos subúrbios cariocas, baseada no entremear de ruas, linhas de trem, contatos, amizades e circulações por todas as direções) a gênese de um projeto transmídia e multifacetado. Se a zona sul carioca me soava como uma linha reta a costurar mar e montanha, a zona norte e a zona oeste me convidavam para esse exercício multidirecional de visualidades cuja tênue trilha a seguir eram os trilhos do trem.
Comecei a tentar mapear essa mitologia intrinsecamente carioca em encontros com diversos líderes dos mascarados da “vida real”, e fui em busca das camadas de suas referências mais silenciosas: fábulas europeias, mitologia africana e indígena, animes japoneses e personagens dos quadrinhos norte-americanos. Como as cores, retalhos e referências da cultura dos mascarados, fui percebendo que personagens, tramas e conexões narrativas poderiam ir e vir, se desdobrar, se detalhar e se copiar, como num jogo de samples, fragmentos e imitações. Um oceano simbólico se abria. Seria preciso, a partir dali, um farol – um personagem que nos guiasse.
Foi aí que, revendo alguns filmes do realismo fantástico tcheco dos anos 1960 e seriados japoneses dos anos 1980, tive a intuição de uma personagem feminina de traços infantis, na faixa dos 13 anos, que como num romance de formação clássico pudesse me ajudar a iluminar os primeiros passos dessa tarefa de investigação. Nascia a personagem Ayana, que no próprio rosto simbolizaria o enigma desse universo através de um tapa-olho que esconde parte de sua face quase infantil (o limbo da pré-adolescência também combinava com a ideia de desdobramento de universo em expansão).
Tivemos a alegria de apresentar os três capítulos-piloto de forma conjunta em sessões especiais dentro do Festival de Rotterdam 2013 (numa mostra especial que reunia séries de TV e webséries de nomes como Kore-Eda e Kioshi Kurosawa). Na volta ao Brasil, quando perguntado por um crítico de cinema se minha intenção era mesmo confundir a percepção de completude das narrativas a que me propunha e, com isso, “dificultar seu trabalho”, só pude abrir um pequeno sorriso.
Porque acho que esse é o meu esforço quando lanço no mundo (junto com meus parceiros criativos) essa cartografia mágica do Rio de Janeiro: convidar para um encantamento urbano à margem das vontades de formatar, controlar e determinar o que seja uma cidadania ideal e harmoniosa no Brasil de hoje – e talvez também a ideia de uma arte idealizada enquanto gesto harmonioso e determinante.
Preciso reafirmar que devo todo esse desejo de imaginação e inspiração política aos bate-bolas da vida real e sua cultura (controversa e muitas vezes violenta, mas nunca menos que maravilhosa). Ao contrário de algumas outras manifestações populares mais domesticadas, eles não andam em linhas reta – desviam, se escondem, pulam, mudam de rumo, se disfarçam, debocham. Não aceitam uma única verdade sociocultural e política como o caminho a ser seguido. Como disse Hermano Vianna em coluna sobre o projeto Claun no jornal O Globo: “a opção pelo projeto transmídia é, de certa forma, em si mesmo um elogio do caos e da porosidade dessa cultura”.
Claun, portanto, se fará nos próximos anos (e espero que por décadas, já que é um projeto para a vida em paralelo aos demais filmes que vierem no caminho) como um mapa simbólico e multinarrativo, antes de tudo. E, como um mapa, poderá ser explorado para todos os lados e em diversas escalas. Porque Claun não é um filme apenas “lançado” na internet – não se trata apenas de experimentar uma forma de difusão. Claun é, desde sua gênese, um objeto sujo e misturado de cinema, seriado, Facebook e HQ. Um rosto que se sobrepõe a outro sob a forma de uma fina rede emaranhada.
O próximo passo de Claun, além de buscar financiar mais capítulos da série para TV e web, é desenvolver um livro em quadrinhos que venha ao mundo já em 2014. criando outras camadas para este universo e mostrando desventuras de personagens dos quais vemos apenas camadas iniciais nos capítulos-piloto que serão mostrados em conjunto na tela do IMS-RJ nos dias 7, 8 e 9 de junho. Além disso, um compêndio de documentações sobre as turmas reais e sua mitologia urbana também deverá ser criado em breve no nosso site.
Ainda me sinto começando, a cada etapa, esse gesto e admiração, narrativa e imaginação. Filme de arte versus seriado pop? Sofisticação versus clichês? Artesanato versus computação gráfica? Todos esses limites serão investigados (o professor Hernani Heffner tem o costume de comparar o gesto do cineasta ao de um detetive) em Claun – com toda paciência e dedicação que pudermos. E como me disse um líder de turma numa madrugada de carnaval em Marechal Hermes: “Isso aqui é um mundo!”
* Felipe Bragança é cineasta.