David Drew Zingg: imagem sobre imagem

Fotografia

13.04.15

David Drew Zingg chegou ao Brasil quando o país passava por transformações profundas. Entre as décadas de 1950 e 1960, a industrialização se acelerava e a sociedade se urbanizava a um passo apertado. Uma sociedade de massa dava os seus primeiros sinais de vida, aos trancos e barrancos. Mudamos nossa forma de nos relacionar com o espaço urbano, os meios de comunicação de massa, o jornalismo, a publicidade e os ídolos. Mesmo assim, muitas perversidades da sociedade tradicional se atualizaram e outras se instalaram. Era uma época de grandes esperanças e decepções na mesma escala.

Entre os anos 1960 e 1970, Zingg participou da criação desse novo imaginário da cultura de massa local e criou a face desses ícones populares no país. Fotografou ídolos da música, do cinema e da televisão. Fez retratos definitivos de personalidades como Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, João Guimarães Rosa; capas de disco de Gilberto Gil, Chico Buarque e Caetano Veloso. Essas pessoas eram conhecidas através do rádio, da televisão e das revistas. Zingg os fez personagens em fotografias com um colorido peculiar. 

Ele mesmo se converteu em uma persona pública por meio de suas fotos e textos. Nelas, parecia um turista de outro tempo. Com sua gravata borboleta e chapéu, se fez o observador de lugares que se modificam com velocidades distintas.

Algumas de suas reportagens abordavam um país em ebulição. Criou uma boa narrativa visual da Passeata dos cem mil e reportou aspectos ambíguos da cultura do capitalismo nacional ao retratar as festas de peão de boiadeiro de Barretos, o povoamento da Amazônia e o cotidiano dos gaúchos.

Desde 2012, o Instituto Moreira Salles hospeda o acervo de David Drew Zingg. O material foi catalogado e digitalizado, e uma pequena parte será exposta. Entre os modernos ensaios de moda, reportagens e trabalhos comissionados, encontramos fotografias de cartazes, letreiros, imagens e anúncios em meio a construções, ruas e pessoas. Essas imagens foram feitas ao longo do tempo, nem sempre estiveram ligadas à sua atividade profissional.

Por pelo menos duas décadas, Zingg caçou essa iconografia no Brasil e nos Estados Unidos, no campo e na cidade. Esses símbolos se misturavam à paisagem. Muitas vezes, registram a mudança de função de prédios e de sinais que chegam ou vão embora sem se encaixar no traçado urbano. Retirando escritos e figuras do seu contexto, as fotografias criam situações anedóticas e bem-humoradas. 

Em boa parte das fotografias, Zingg mostra essa sinalização se amontoando por aí. Diferentemente do trabalho de seus compatriotas William Eggleston e Ed Ruscha, em que luminosos da Esso e da Coca-Cola têm escala e pontos de vista privilegiados, aqui eles são só mais um elemento entre outros. Não têm nem a dimensão, nem a posição das imagens de Eggleston, em que os letreiros se impõem. São ícones em paisagens vazias, que não deixam dúvidas que o terreno foi colonizado e jaz sob o reino do capitalismo corporativo.

Essa dimensão pop, de Eggleston e Ruscha, por exemplo, está presente em Zingg. É componente fundamental tanto dos seus autorretratos como de algumas das imagens mais icônicas de Nova York. Mas naquilo que ele fez de melhor, as coisas aparecem mais atrapalhadas. Há letreiros de todos os lados e todos buscam o seu lugar ao sol. Letreiros de épocas e procedências diversas querem anunciar, passar o seu recado simultaneamente. Uma figura na parede comenta algo sobre um letreiro acima, que desmente a inscrição ao lado. Assim, em uma foto, em uma fachada de azulejos verdes, vemos uma porta em formato de ogiva de igreja gótica ao lado de uma pintura a imitar o anúncio fotográfico da Brahma Chopp. Na mesma casinha, o lugar é descrito como drogaria, restaurante e hotel. E elas são de fato tudo isso e algo que não pode ser bem expresso por legendas.

Em uma das mais belas fotografias, Zingg contrapõe uma fachada vermelha em plano fechado ao interior sombreado e profundo de um salão. O exterior é luminoso, chapado, e domina a imagem em cima e nas laterais. A cor envolve o interior escuro. A parte de dentro é menor que a de fora. Lá, uma profundidade tênue é anunciada, marcada por duas lâmpadas de néon, uma perto da fachada, outra no fundo do salão. As paredes parecem ter recebido o vermelho há pouco tempo e encobrem parcialmente, como uma veladura, um letreiro no topo da imagem, em tipos garrafais, onde se lê Sayonara. A distinção entre o que é interno e externo, o que é gráfico e o que é volume, é evidente. 

Como Sayonara é a forma de os japoneses se despedirem, na imagem a palavra talvez se refira ao espaço tridimensional que aparenta minguar na mesma medida em que o vermelho toma conta do espaço, inclusive apagando qualquer inscrição. Nota-se que o número da casa está no canto inferior direito da foto. Contudo, prefiro pensar nas funções que o lugar deve ter tido. O letreiro talvez tenha sido encoberto pela cor, já que o lugar provavelmente também se modificou. O salão apresenta índices dos usos distintos. Assim como o país, ele é feito desses resíduos de épocas diferentes que se atualizam por vezes de maneira divertida, por vezes de maneira perversa. 

Esses símbolos são resíduos de uma época que insiste em não ir embora e de um presente que se estabelece de maneira pouco convincente. As duas épocas existem nas fotos. Em uma fotografia da pitoresca Vila Itororó, em São Paulo, todas as ambiguidades se mostram juntas. Naquela época, o antigo palacete havia se tornado um cortiço. Na foto, a Vila já é mostrada como uma casa modesta. A coluna, no centro da imagem, é adornada com uma versão kitsch de uma divindade greco-romana – curiosa por si mesma. Na imagem, ela está alheia ao uso da casa, por ser encoberta com varais carregados de roupa. A construção já não é mais a mesma coisa. Mas a escultura permanece, mesmo fora de contexto. 

É nesses momentos que o trabalho fica mais forte. Quando nos faz perceber esses desequilíbrios. Melhor, quando junta construções, elementos arquitetônicos, textos, paisagens e personagens que parecem não se conhecer, mas compartilham o mesmo espaço. 

É como se os lugares fossem feitos dessas colagens, de empilhamentos de diversas épocas, de diversos lugares. Por fim, assim como os cartazes amontoados e sobrepostos que ele fotografa, as imagens são fragmentadas. Os cartazes de trás deixam manchas no da frente e outro rouba o fim de uma palavra. Por vezes, os papéis amontoados estão em conflito: um impede que o outro seja entendido. No entanto, por sorte, às vezes, ao se juntarem, eles se tornam mais graciosos. Há junções divertidas. Em um tom de crônica, as fotografias de Zingg mostram essas coincidências felizes e o ruído ensurdecedor de um amontoado de ruínas. Muitas vezes tudo isso está na mesma imagem.

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