Sons inexistentes

Colunistas

22.02.12

Todo mundo que eu conheço gostou de O artista. O que torna tanto mais difícil e constrangedor explicar para todo mundo por que acho O artista um lixo. Tem a ver com o que eu chamo de falta de autoria, que é um argumento subjetivo e em grande parte duvidoso, eu concordo, porque também não é de toda autoria que eu gosto. Não gosto, por exemplo, dos filmes de Zhang Yimou, que têm um estilo tão imediatamente reconhecível quanto os livros do Paulo Coelho ou de Danielle Steel, à sua maneira. O artista não tem autoria. E isso tampouco quer dizer que ele seja mais ou menos comercial, mais ou menos holywoodiano. Um filme absolutamente holywoodiano, como Drive, de Nicolas Winding Refn, é um elogio ao cinema de autor.

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Cena de O artista, de Michel Hazanavicius: “filme sem autoria”

Depois de ver algumas bombas na Berlinale, três delas na competição oficial, fui assistir ao encontro de jovens cineastas com o turco Nuri Bilge Ceylan, autor de uma obra espantosa, cujo ápice, para mim, é o recente Era uma vez na Anatólia, que vi faz uns meses, em Paris (o filme passou na Mostra em São Paulo). Pensei que o que ele dissesse podia talvez me ajudar a traduzir, de uma forma concisa e abrangente, o que chamo de autoria no cinema. Conforme Ceylan comentava trechos de seus filmes projetados para a plateia de jovens cineastas, fui me dando conta de que havia neles uma diferença de tempo. A autoria, em Ceylan (e pensei que talvez isso pudesse ser estendido ao cinema em geral), tem a ver com a manipulação do tempo. Tanto faz se o tempo é lento ou acelerado. Um verdadeiro cineasta, um verdadeiro autor de cinema, recria o tempo – e o converte em um tempo próprio.

O tailandês Apichatpong Weerasethakul ou o filipino Brillante Mendoza (na competição da Berlinale, com Captive) inventaram tempos próprios. Um tempo animista, extremamente lento e contemplativo, no qual homem e natureza se confundem, no caso do tailandês. E um tempo frenético, caótico, que flerta com a barbárie e no qual a razão e os sentimentos estão subjugados à prioridade dos desejos e às oscilações de grupo, no caso do filipino. Entretanto, quem se contenta em emular um suposto e bem-sucedido estilo do sudeste asiático, que teria a ver com certo kitsch, com a interação entre os homens e o mundo animal e com uma perspectiva hipersexualizada das relações humanas, como se vê nos filmes de Weerasethakul e de Mendoza, acaba quebrando a cara. É o que acontece com o indonésio Edwin, em Postcards from the Zoo (também na competição oficial da Berlinale). Edwin ouviu o galo cantar, mas não sabe onde. Faz um cinema de segunda mão, anódino, tentando filiar-se a um estilo que só convence aqueles cujo fascínio pela diversidade já não permite distinguir entre um exotismo e outro.

“Vejo cada vez menos filmes e leio cada vez mais livros”, responde Nuri Bilge Ceylan quando lhe perguntam sobre seus cineastas favoritos. E, depois de alguma resistência, acaba citando Robert Bresson. Dá pra entender. Ceylan não imita Bresson, mas faz parte do mesmo universo do cineasta francês. A autoria, tanto num como no outro, produz uma percepção alterada do tempo, que já não corresponde nem à percepção cotidiana da realidade nem à percepção que costumamos (e aprendemos a) ter com as convenções cinematográficas.

O tempo alterado amplia a percepção do mundo. Toda autoria cria convenções próprias e irredutíveis, um novo pacto com o espectador, em oposição às convenções vigentes. A alteração é resultado de uma construção minuciosa e inusitada. Os filmes de Ceylan são feitos de planos-sequência (“O corte é uma questão moral. Se não há razão, você não deve cortar”, explica o cineasta). A primeira cena de Era uma vez na Anatólia é um longo plano-sequência no qual um comboio de carros vem na direção da câmera, à noite, com os faróis acesos, por uma estrada no meio do campo. Um grupo de policiais e um médico legista acompanham um suposto assassino, à procura do lugar onde ele teria enterrado sua vítima.

“Parece que as luzes vêm dos carros, mas é lógico que não foi assim. As mentiras são necessárias”, diz o cineasta. Não há música. “Os sons são a música. Os meus sons são mais abstratos. Os ouvidos são seletivos. Os sons em geral são interiores. A mente pode criar sons inexistentes. E eu me sinto livre para usá-los.” A autoria, afinal, tem a ver com a liberdade de ouvir esses sons inexistentes.

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