Sonhos e pesadelos

Cinema

20.05.15

Cannes. Se podemos aceitar a hipótese de gostar de um filme sem exatamente compreender o que ele nos fala, por falta de conhecimento da cultura que inspirou sua invenção, chegamos perto da sensação provocada por Cemitério do esplendor (Rak ti khon kaen), de Apichatpong Weerasethakul, exibido em Cannes na mostra Un certain regard. A atmosfera é a mesma de Tio Boonmee que se recorda de suas vidas passadas, Palma de Ouro no festival de 2010, distribuído comercialmente nos cinemas brasileiros no ano seguinte. Estamos na fronteira entre os vivos e os mortos, entre o que percebemos nos sonhos e o que vemos quando despertos, entre as árvores de hoje e os castelos de vidas anteriores engolidos pela floresta, entre o visível e o invisível. Uma fronteira aberta. O filme, a passo lento, procura nos ensinar como caminhar nesta linha tênue: é preciso dormir acordado. “Dou tanta importância a minha existência onírica quanto à minha vida real”, diz o diretor para sublinhar que seu filme tanto pode ser percebido como um sonho desperto quanto como uma realidade que se parece com um sonho”.

Cena de Cemitério do esplendor

Num hospital improvisado no prédio de uma velha escola, num terreno que em vidas passadas foi um cemitério de reis, soldados vítimas de uma doença desconhecida dormem todo o tempo. Uma jovem capaz de ler os pensamentos traduz o que os soldados sonham para uma possível conversa entre eles e os parentes, enfermeiras e médicos que operam máquinas americanas testadas no Afeganistão para garantir um sonho tranquilo.

Mais do que uma história temos nesta situação uma base para um conjunto de imagens simples: árvores, nuvens no céu, as águas calmas de um lago, a galinha que passa pela porta com seus muitos pintos, a ampla e silenciosa enfermaria do hospital em que os soldados dormem. Imagens simples, mas de certo modo desconcertantes como a visão oblíqua de cenas de filmes de terror e de efeitos especiais ou a expressão congelada dos espectadores, de pé, ao final da projeção. Algo a ver com uma meditação sobre a Tailândia onde, para Apichatpong, “vive um ciclo interminável de golpes de estado desde 1932, quando passou da monarquia absoluta para a monarquia constitucional. Desde então vivemos alternadamente ciclos de sonhos e de golpes de estado”. E, ao mesmo tempo, um retorno à paisagem de sua infância que se resumia ao hospital em que seus pais trabalhavam, a casa de madeira em que viviam, uma escola e um cinema. Neste ambiente, diz, aprendeu a se interessar vivamente pelos sonhos. “Comecei a anotar o que sonhava num caderno. Penso que era uma maneira de escapar às situações terríveis que via nas ruas”.

Nesta quase nenhuma ação, soldados que dormem em camas cercadas de tubos coloridos que emprestam à enfermaria um tom verde, laranja ou azul, um pequeno entrecho: uma mulher se oferece para se ocupar de um dos soldados que não recebia visitas e descobre um diário em que ele anota frases (“queremos que os outros perdoem nossas ofensas, mas estamos prestes a perdoar as ofensas que nos fazem?”) e desenhos indecifráveis que ela suspeita ter uma qualquer ligação com a doença do sonho. Um entrecho, mas não propriamente uma história. Como se estivéssemos não diante de filme, mas no interior de uma instalação. Cemitério do esplendor procura envolver o espectador numa atmosfera que reproduz num outro espaço, pura e imediatamente sensorial, a condição dos soldados que dormem assistidos pelas máquinas de evitar pesadelos trazidas pelos médicos. Com algum exagero é possível dizer que em oposição aos filmes que, no programa do festival, se esforçam para manter o espectador bem acordado por meio explosivos efeitos visuais e sonoros, em oposição a estes filmes, Cemitério do esplendor convida a plateia a dormir como seus personagens. 

Ao contrario de tudo isto, se podemos aceitar a hipótese de não gostar de um filme exatamente por compreender tudo o que ele nos fala, chegamos perto da sensação provocada por Juventude (Youth) do italiano Paolo Sorrentino e Sicário do canadense Denis Villeneuve, ambos falados em inglês, com atores americanos ou ingleses – Michael Caine, Harvey Keitel, Rachel Weiss e Jane Fonda no primeiro; Emily Blunt, Josh Brolin, Benicio del Toro, no segundo. As histórias contadas nos dois filmes importam pouco. Antes mesmo de serem escritas para o filme já se encontram definidas e perfeitamente explicadas pela escolha do processo de produção. Juventude, de Sorrentino, se passa numa única locação, uma estação de repouso e veraneio na Suíça (no cenário real e também no que um velho maestro e um velho diretor de cinema inventam em seus sonhos). Sicário, de Villeneuve, move-se todo de um lado para outro da fronteira entre os Estados Unidos e o México. Habituais anedotas sobre a terceira idade num, habituais tiroteios entre traficantes e policiais no outro. E principalmente, num e noutro, os heróis e vilões que povoam o mundo do cinema desde pelo menos o estabelecimento de uma galeria de personagens e modos de filmá-los no começo do cinema sonoro. Nenhuma dificuldade em seguir o que se diz aqui porque de certo modo não se diz muito. Existe, é verdade, nos muitos planos aéreos de Sicário algumas belas imagens do deserto. E nas muitas caricaturas, todas de uma ironia depreciativa, de Juventude, um retrato grotesco de Maradona, identificado como o “sul-americano”. Nada, ou quase nada para o muito barulho que os filmes fazem na tela.

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