Sou daqueles que deviam andar algemados e amordaçados no trânsito, se fosse possível dirigir assim. Posso sair de casa com uma auréola pairando sobre o carro, mas basta alguém buzinar, me fechar ou me xingar para eu incorporar o facínora. Já persegui gente no trânsito para retribuir na mesma moeda. Sou um argumento ambulante contra o livre comércio de armas.
Achei que estivesse curado em Berlim, município da tranquilidade. Até um motorista de táxi abrir o vidro do passageiro e, aos gritos, me mandar sair da rua e voltar pra calçada com a minha bicicleta. Ou pelo menos foi o que entendi, já que nunca é demais lembrar que não falo alemão. Os gritos eram tão mais incompreensíveis quanto tem sido impecável a minha conduta no trânsito. Além de ser proibido andar de bicicleta na calçada. De modo que não pensei duas vezes antes de estender a mão com o dedo médio em riste.
O taxista não acreditou. Parou e, reproduzindo o meu gesto a título de ilustração, perguntou (dessa vez, em inglês, porque só um estrangeiro, na sua ignorância, podia ter reagido como reagi) se era aquilo mesmo que eu tinha querido dizer. Ele estava a fim de encrenca. E eu, cada vez mais transtornado, repeti o gesto, disse que ia chamar a polícia e peguei o celular. Fingi que discava o número da polícia, fingi que falava em inglês com a polícia e que dava o endereço de onde estávamos. Tudo bem alto, como um louco, pra ele ouvir. Era como se eu fosse parte de um episódio do Seinfeld. O taxista tampouco pensou duas vezes. Encostou o carro e me convidou a esperar a polícia ao lado dele. Eu fugi, é claro, porque não sou bobo e não ia passar o resto da tarde, com um motorista de táxi alemão, à espera da polícia que não vinha.
Só depois me advertiram que mostrar o dedo médio no trânsito, em Berlim (ou na Alemanha?), dá multa de 500 euros (há divergências: um amigo alemão me garantiu que a infração só vale quando a vítima for a própria polícia e que a multa é de mais de mil euros). Me aconselharam a dizer que estava apenas pondo os óculos de volta no lugar, no caso de ser interpelado pela polícia depois de uma reincidência incontrolável.
Já não lembro se foi no mesmo dia do incidente com o taxista que tirei a auréola do armário para ir prestigiar a leitura de um colega na abertura do festival internacional de literatura de Berlim, no qual também terei uma breve participação. É muito possível que tenha sido no mesmo dia, porque em geral as coisas vêm em ondas.
Descobri recentemente, com um misto de desgosto e ódio, que a minha leitura no festival internacional de Berlim tem tema, ao contrário do que eu pensava. Chama-se: “Uma aventura no Xingu”, ou alguma coisa do gênero, como não podia deixar de ser. Mesmo assim, com razões de sobra para não comparecer, insisti em prestigiar a leitura do colega na abertura do festival. Pra quê? Ao apresentar o evento, o diretor distribuiu os agradecimentos de praxe e apontou nominalmente um ou dois escritores na plateia, entre os demais homens de terno e acompanhantes que pareciam ter a ver com todo tipo de negócio menos com literatura. E se não fosse pela insistência infeliz da representante da instituição cultural graças à qual gozo de um ano em Berlim, e que, sentada ao meu lado, apontava enfaticamente para mim, o diretor teria me ignorado. Entretanto, forçado a me incluir na apresentação, virou-se para mim, a contragosto, e, forjando uma alegria de fachada, disse: “E também temos aqui… também temos… o Gabr… Rafa… Edu…”, enquanto gesticulava para que eu lhe facilitasse a vida e dissesse afinal a porcaria do meu nome. Quero crer que só o cansaço, depois da altercação com o taxista, possa explicar a pirraça da minha resposta: “Que bobagem! Deixa pra lá! Não tem problema nenhum. Não se preocupe com isso”, eu disse, em vez do nome, obrigando o diretor a explicar à plateia que não tínhamos sido apresentados (e que portanto não podia saber mesmo quem eu era). A situação provocou algum constrangimento, é claro. Mas nada que em dois minutos não tivesse sido esquecido e que depois não me permitisse gozar ainda com mais satisfação a redenção de voltar pra casa, no meio da noite, pedalando, sem nome e sem nenhum táxi à vista.
* Na imagem da home que ilustra este post: detalhe de Índios – Cenas do dia a dia, c. 1975, Xingu-MT, de Maureen Bisilliat (acervo IMS)