Apreciando a literatura argentina

Correspondência

05.09.11

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Caro Zé Geraldo,

 

Sua última carta é impecável, abordando a questão da arte e da não-arte sob todos os ângulos possíveis. E estou inteiramente de acordo quando você diz que nem um livro inteiro conseguiria definir o que é arte. E a fábula do diabo e Adão contada por Orson Welles em F for fake é impagável e certeira.

Não li ainda o novo livro de Ricardo Piglia, Alvo noturno, mas vou comprar imediatamente. E há uma boa coincidência no fato de você ter mencionado o autor argentino, pois falei dele durante algum tempo, uns quinze dias atrás, filmado que fui para uma série de programas intitulada Os livros que amei, dirigida por Suzana Macedo, que irá ao ar daqui a alguns meses no canal Futura.

E entre os três livros que escolhi estava justamente Formas breves, de Piglia, esta obra híbrida misturando relatos e ensaios, que você com certeza já leu. O que me seduz, principalmente, neste livro – e acho que podemos encontrar aí um critério de valor – é que Piglia faz da leitura de seus ensaios um ato de extremo prazer, como se estivéssemos lendo uma boa ficção. E é no capítulo “Os sujeitos trágicos (literatura e psicanálise)” que se lê sobre aquele encontro entre Jung e Joyce, que você mencionou numa de suas cartas.

Outra coisa que me atrai nessas formas breves é que RP encontra modos absolutamente originais de falar sobre livros e autores, como em “Notas sobre Macedonio (Fernández) em um diário”, em que Piglia escreve num diário, em dias espaçados, essas notas sobre aquele que foi também o mais original dos escritores argentinos – e olha que isso não é pouco num país com uma literatura de primeira linha. E nesse ensaio vale citar a abordagem que RP faz do amor como clichê narrativo, chegando inevitavelmente ao tango, que aliás foi tema de um curso que Piglia deu numa universidade americana. E ele aponta o tango anarquista “Cambalache” (no Brasil gravado por Caetano Veloso), de Enrique Discépolo, como O Aleph dos pobres.

O Aleph nos leva naturalmente a Borges, que não poderia estar ausente do livro de Ricardo Piglia. Na narrativa “O último conto de Borges”, ele nos diz que o último conto do mestre surgiu de um sonho em que viu um homem sem rosto num quarto de hotel e que lhe oferecia nada menos que a memória de Shakespeare.

Afirma ainda Piglia, com fino senso de humor, que Borges, com um domínio impecável da língua, teve de resolver o seguinte dilema: como escrever num espanhol que tenha a precisão do inglês, mas conservando os tons da fala nacional. Tudo isso a propósito da estranheza que foi a marca dos dois grandes estilos produzidos, segundo Piglia, no romance argentino do século 20: o de Macedonio Fernández e o de Roberto Arlt.

Aqui entro eu, Zé Geraldo, para dizer que não deveriam os brasileiros perder a oportunidade de ler Roberto Arlt (por exemplo Os sete loucos e O lança-chamas, traduzido em nosso país), uma espécie de avesso de Borges, embora sem animosidade entre os dois, pois seus personagens eram gente da arraia-miúda, para não dizer da marginalidade.

Já Macedonio Fernández teve lançado aqui há pouco, em edição primorosa da Cosac Naify, seu Museu do romance da eterna, um dos livros mais inventivos já escritos na literatura de todos os tempos. Dele disse Piglia: a literatura argentina deve tudo a Macedonio. Ele é o nosso Joyce. Basta dizer que o Museu é um livro de vários prólogos e apontamentos, enquanto o romance mesmo ocupa um pequeníssimo espaço. Ou, no dizer de Damián Tabarovsky: “O livro avança a partir de uma série de prólogos que precedem um texto que nunca chega. Se Macedonio nos ensina algo, é que o romance moderno se faz de retalhos, desvios, digressões”. E pode-se dizer que um livro como O jogo da amarelinha, de Cortázar, nunca teria sido escrito sem a influência de Macedonio. Este, aliás, me parece um patafísico (como Cortázar em seus almanaques). A “patafísica” (a aspinha faz parte) é, entre várias outras coisas, a ciência das soluções imaginárias e foi fundada pelo francês Alfred Jarry, num de seus livros: Gestos e palavras do doutor Faustroll.

Mas volto à minha admiração pela cultura argentina e até mesmo por este país que é uma espécie de enclave da Europa na América do Sul, porém com suas particularidades inconfundíveis, como o tango, além de seu estilo muito próprio de jogar futebol. Pelé foi maior que Maradona, sem dúvida, mas há uma malandragem e uma picardia em Maradona que só podem ser portenhas. E dou uma guinada de 180 graus para dizer que, como tricolor carioca, estou vibrando com a contratação desse argentino de 18 anos, Lanzini, que pode vir a ser um novo Conca.

Retornando a Formas breves, eu diria que é simplesmente encantador o modo como em “Notas sobre literatura em um diário”, Piglia trata carinhosamente a diretora de teatro e atriz russa Asja Lacis, colaboradora do cineasta revolucionário Eisenstein e que pôs Brecht em contato com as ideias da vanguarda soviética, entre elas a teoria do distanciamento. Nos diz Piglia que Asja, pronunciando, diante de Brecht, numa peça, o alemão com sotaque russo, produziu um tal efeito de desnaturalização, que levou o dramaturgo a aprofundar essa teoria.

Asja Lacis morreu num campo de concentração stalinista e fico pensando, Zé Geraldo, diante do reacionarismo estético em todos os tempos, em como se assemelham os repressores da arte, sejam de esquerda, sejam de direita. E um livro belíssimo e ilustrado que tenho aqui na minha frente sobre a vanguarda russa e soviética se chama justamente A grande utopia. E não nos servirá, Zé, esta ideia de utopia para qualificar – não esgotar, bem entendido – boa parte da grande arte?

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