A Borges o que é de Borges

Correspondência

08.09.11

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Caro Sérgio,

 

Vira e mexe, voltamos a Borges. Não há como contorná-lo ou ignorá-lo. Ricardo Piglia disse certa vez que todo escritor argentino moderno (incluindo ele próprio, Piglia) busca combinar em alguma medida as linhas mestras da literatura do país, fundadas de um lado por Roberto Arlt e de outro por Borges.

São matrizes contrastantes: a literatura visceral e arrabalera de Arlt, a literatura clássica, culta e “europeia” de Borges. A busca de uma “terceira via” que se nutra das outras duas é visível, por exemplo, em Cortázar, em Bioy Casares, em Puig, em Saer e, mais recentemente, em Alan Pauls.

Cortázar disse numa entrevista que tomou um susto ao ler pela primeira vez um texto de Borges, com sua concisão extrema. Acostumado a uma literatura ibero-americana um tanto verborrágica, rebarbativa, ele disse ter exclamado consigo mesmo: “Mas o que está acontecendo aqui? Esse sujeito não escreve por acréscimo, mas por subtração”.

Isto aqui está soando muito professoral, então vou baixar o tom contando uma história pessoal. Uma vez perdi uma namorada – ou ela me perdeu – por causa do Borges.

Estávamos na faculdade, em começo de namoro e, cheio de expectativa, emprestei a ela o Ficções. Depois de umas duas semanas ela me devolveu o livro com um bilhete que dizia mais ou menos assim: “Esse Borges tem muitas qualidades, mas não está entre os meus autores favoritos”. Não quis mais saber dela. Ora, não ter Borges entre os escritores favoritos tudo bem, é uma questão de gosto pessoal. Mas dizer que ele “tem muitas qualidades” foi intolerável. Parecia que estava falando de um calouro do Silvio Santos.

Fui ver Borges quando ele veio a São Paulo trazido pela Folha, em 1984, dois anos antes de sua morte. Assisti à palestra dele no auditório do Masp. Foi uma loucura, uma hora antes do evento já o esperava uma multidão ensandecida, predominantemente jovem, como se estivesse para chegar um superastro pop. Uma imagem, em particular, me perturbou: Borges, octogenário e cego, descendo em direção ao palco de braço dado com Maria Kodama, em meio à plateia em delírio, quando de repente uma moça mais entusiasmada se atira em cima dele e lhe aplica um beijo no rosto. A cara de pavor de Borges, enquanto a garota se afastava enxugando as lágrimas, nunca me saiu da memória.

Nesta nossa correspondência, gosto muito quando você comenta outros escritores. Algo que sempre me fascinou: um artista falando de outro artista. Isso vale até para jogadores de futebol. Por exemplo, Rivellino dizendo que se desconcentrava nos jogos contra o Palmeiras porque ficava admirando a classe do Ademir da Guia.

A prática continuada de determinado ofício, o exercício de determinado meio de expressão, dá ao artista um olhar privilegiado, uma sensibilidade aguçada para os trabalhos de seus pares. Gosto de tomar emprestados esse olhar e essa sensibilidade, me refestelo neles.

E essas visões de artistas por outros artistas são muitas vezes idiossincráticas, passionais, desequilibradas. Nem sempre podem ser tomadas como parâmetro crítico. Um exemplo dentro do campo das nossas conversas recentes: Bioy Casares, o grande parceiro e amigo de Borges, não gostava da literatura do Macedonio Fernández. Assim como Bergman não gostava do cinema de Orson Welles, Buñuel não gostava de Rossellini, e Godard não gosta de Kubrick.

Houve um tempo em que eu me afligia com essas divergências entre artistas que eu amava. Não sabia de que lado me “alinhar”. Hoje as considero um atrativo a mais, uma evidência do que há de terreno, parcial, precário ou falível – de humano, enfim – nesses grandes criadores.

Agora vejo como uma bobagem sem tamanho perder uma namorada ou um amigo por causa de um escritor, por mais admiração que possamos ter por ele. Mas entendo quando acontece.

Dito isso, gostaria que você falasse um pouco sobre alguns autores que me parecem importantes na sua formação, como Hemingway, por exemplo, ou mesmo Rubem Fonseca. E também sobre aqueles de quem você parece mais distante, mas que admiro profundamente, como Faulkner, Graciliano e Guimarães Rosa. Eu bem que disse, em minha primeira carta, que temia transformar esta conversa numa entrevista. Me contive até agora, mas não posso perder a oportunidade. O vírus do jornalismo não tem cura.

 

Grande abraço,

 

Zé Geraldo

 

* Na imagem da home que ilustra este post: o escritor argentino Jorge Luis Borges (imagem de divulgação/Companhia das Letras)

 

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