O futuro nada previsível de Julio Cortázar

Literatura

26.08.14

Em uma cena memorável de Amuleto, a protagonista do romance de Roberto Bolaño está presa no banheiro da faculdade enquanto os militares invadem o prédio, e, sentada sobre a privada, entra numa espécie de transe na qual reflete quais autores serão lidos no futuro e quais serão esquecidos. Bolaño um escritor que sempre se interessou pelo cânone e pelos instrumentos que legitimam ou invalidam um autor, que fazem um ficcionista entrar na moda ou ser ignorado deve muito a Julio Cortázar: é difícil imaginar a existência de Os detetives selvagens sem O jogo da amarelinha. Mas está cada vez mais difícil definir qual será o legado de Cortázar, e, se ele sobreviver nesse território tão abstrato conhecido como história da literatura, como será lembrado.

O escritor argentino foi minha primeira paixão literária fora dos livros de ficção científica e da literatura fantástica que continha elfos e orcs (ao contrário da literatura fantásticapela qual Cortázar se tornou famoso), e por muitos anos de minha vida, tomei-o como uma unanimidade. A primeira vez que ouvi alguém questionar tal posição privilegiada foi em uma palestra de Beatriz Sarlo. A intelectual afirmou que, durante a faculdade, ela e todos seus colegas se recusavam a ler Borges pois o autor de Ficções era supostamente de direita e fora condecorado por Pinochet. Em vez disso, Sarlo e seus colegas liam fervorosamente Julio Cortázar. Que grande erro, afirmou Sarlo na palestra, pois nos dias de hoje (que, na época, era 2007), Borges continuava sendo um objeto de fascínio, enquanto Cortázar não lhe interessava mais. 

Recentemente, conversei com uma tradutora argentina que verte muitos novos autores brasileiros para o espanhol, e ela me perguntou por que nós, brasileiros, gostamos tanto do Cortázar? Lá na Argentina, ela me informou, ele é um cara que você lê no colégio, na graduação, e depois meio que esquece. A disputa não é Borges versus Cortázar, mas Borges versus Bioy.

O prolífico e talentoso César Aira é taxativo: em entrevista à revista Ñ, afirmou que o “melhor Cortázar está no nível de um Borges ruim”. Recentemente, descobri graças a um texto em defesa de Cortázar publicado pelo crítico Alfredo Monte esta frase de Alan Pauls, que me parece muito sintomática da visão atual que os argentinos nutrem do conterrâneo: Seus livros, mesmo os melhores, parecem exigir agora de mim o impossível: que volte a ser jovem. Como se só assim, rejuvenescendo, pudessem exercer sobre mim algo parecido ao efeito de audácia e aventura que em algum momento exerceram.

Hipótese levantada: seria Cortázar, para boa parte das pessoas, uma paixão (que se perde ou se mantém) da juventude? Mais uma vez César Aira: “Cortázar é o escritor da iniciação, dos adolescentes que se iniciam na literatura e encontram nele o prazer da invenção”. A primeira vez que li Os detetives selvagens foi porque um amigo me havia recomendado dizendo que era o livro ideal para ser lido até os 25 anos. E existe a categoria de livros para ler antes dos 25? Tenho a sensação que sim. Bukowski é um escritor que serve para corroborar a tese: de todos os leitores que conheço, os que gostam de Bukowski são os que leram o americano na adolescência e guardam um carinho por aquele sujeito que os apresentou a uma literatura feita no balcão de um bar sujo; já todos os que detestam Bukowski, tentaram lê-lo depois dos 25. Tarde demais. On the Road, de Jack Kerouac, talvez também seja um exemplo (aventado com base em observações totalmente empíricas e nada científicas) disso. Todavia, Kerouac e Bukowski só servem de exemplos para jogar com essa “hipótese da juventude”. Ambos são donos de uma obra que, no meu parecer, é muito menos diversificada e rica do que a de Cortázar.

O jogo da amarelinha surgiu como uma pequena revolução das letras. Com (no mínimo duas) maneiras distintas de ser lido, o romance parecia um primeiro passo rumo a ideia da obra aberta, que cada leitor experimentará de uma maneira diferente; se o leitor é o rei, O jogo da amarelinha se revela uma obra democrática e nesse momento consigo imaginar a geração de Sarlo, composta por estudantes de esquerda, apaixonando-se pelo livro. Se O jogo da amarelinha permanece e basta ver as edições comemorativas para se ter certeza de que sim, o romance permanece – é muito em parte por causa da sua estrutura inovadora, com seus capítulos prescindíveis que parecem grandes notas de rodapé ao texto central, um suplemento que pode ameaçar o domínio do texto central. Essa abordagem lúdica da literatura – a imensa alegria da invenção que Pauls e Aira enxergam de forma crítica e associarão a uma juventude irrecuperável – parece prever uma época em que livros não são adaptados apenas para o cinema mas também para jogos de videogame.

Porém, lendo ou relendo hoje em dia, há uma série de coisas no romance que parecem tão, tão datadas. Em primeiro lugar, há a romantização afetadíssima da vida do intelectual em Paris, em noites infindáveis de discussões cabeçudas mediadas por jazz, álcool e cigarros. O intelectual vive o papel do flâneur que não trabalha mas consegue sempre pagar o vinho e os livros, cuja vida é uma aventura pontuada por citações filosóficas. Em segundo, há a figura central do casal Oliveira-Maga, composta pelo par binário do homem representando a cultura e a razão e a mulher representando a natureza e a loucura, que em 1963 pode ter soado algo charmoso para os seus primeiros leitores, mas que nos dias de hoje não passa da repetição nociva de um estereótipo.

Mas Cortázar não é apenas O jogo da amarelinhareduzi-lo a tal parece um vício de sempre buscar no romance longo a obra máxima de qualquer autor. Cortázar é acima de tudo um contista. Se os seus romances são dispersos, excessivos (lembro do gordurento Os prêmios), seus contos são feitos com medidas exatas e cortes milimétricos. Não é por acaso que durante a graduação em Letras, fui obrigado a ler A casa tomadaem três disciplinas diferentes: o conto tem mais interpretações possíveis do que número de páginas, e serve de exemplo da potencialidade absurda do gênero.  Além do mais, suas histórias fantásticas se mostram – para além de qualquer julgamento de valor – entretenimento quente. Tramas como a deA ilha ao meio-dia e O rio trazem reviravoltas que depois o cinema Hollywoodiano usaria loucamente. 

É mais do que óbvio que não tenho a pretensão de concluir qual será o legado de Cortázar, como ele será lembrado, muito menos em um texto de duas páginas. Eu não tenho capacidade ou autoridade para tal, e provavelmente um estudioso dedicado de literatura argentina também não. Tudo que se pode fazer é refletir sobre a mudança que vem se operando na recepção de um escritor que até há pouco soava como uma unanimidade. E especular, continuar especulando, mesmo sabendo que ninguém pode descobrir se em 2037 Cortázar não retornará como o maior fenômeno cult; no fundo, todos somos como a personagem de Amuleto, presos num delírio no qual acreditamos por um instante que é possível prever o futuro da cultura.

Hoje, dia 26 de agosto, Julio Cortázar completaria 100 anos.

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