A professora, escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de 69 anos, é uma das intelectuais públicas de maior projeção da América Latina. Autora de 16 livros de ficção, ensaios e críticas, professora visitante das universidades de Colúmbia, Berkeley, Maryland e Cambridge, Beatriz dedicou-se desde sempre à compreensão dos fenômenos culturais e da modernidade. Escreveu numerosos ensaios sobre o peronismo, esmiuçou a obra de Jorge Luis Borges e publicou textos fundamentais sobre comunicação.
Em ensaio recente publicado na revista serrote, “O animal político na web”, Beatriz tece críticas contundentes às redes sociais, ferramentas que ela julga carentes de profundidade e atravessadas por vaidades pessoais. As redes, diz Beatriz, são um retrato do nosso tempo, em que a mobilização e a ilusão de intimidade se transformam em obstáculos ao aprofundamento do debate de ideias.
Em conversa com o blog do IMS, Beatriz, que trabalha em um escritório na charmosa avenida Corrientes, em Buenos Aires, falou sobre os principais modelos dessas redes, sobre o uso da internet durante a campanha de Barack Obama, em 2008, e sobre e relação entre a web e o surgimento de novos escritores.
No ensaio “O animal político na web”, a senhora afirma que a internet penaliza o outsider, pois é “uma tecnologia de ponta que valoriza o juvelinismo em voga nas sociedades contemporâneas”. Ela não seria, no entanto, uma forma de integração social como tantas outras?
O Twitter, para exemplificar uma das redes sociais que eu analiso, é particularmente próximo de uma cultura juvenil que se define, em primeiro lugar, justamente por essa característica: é o território dos exploradores, dos evangelizadores da novidade. Se define também pela busca do punch, do golpe forte, mais ou menos como a cultura do rock. A segurança de que é possível opinar sobre tudo em 140 caracteres é uma aposta na forma curta, carente de argumentação e propostas, bem ao estilo moderno. É perfeitamente possível convocar uma manifestação no Twitter, como demonstram os êxitos recentes no Egito, mas é improvável pensar alternativas políticas ou explorar e implantar ideias mais aprofundadas. O Twitter é expressionista, no sentido de alto contraste da oposição categórica, onde os conflitos se apresentam desesperadamente compreensiveis e simplificados. É como um slogan de adesão rápida ou negações enfáticas.
O Facebook, entretanto, é mais amigável para culturas extraweb. Mesmo os embates políticos no Facebook permitem longos discursos, como se houvesse a possibilidade de escutar sem liquidar o discurso do outro. Por outro lado, o Facebook é perfeitamente adequado para as formas contemporâneas de consumo e do mercado de bens materiais e simbólicos.
Sobre blogs, é quase impossível generalizar, exceto se criarmos um critério muito específico (jornalístico, literário, político, esportes). A facilidade técnica de criação e produção de um blog permite todas as alternativas em todos os níveis, desde o amadorismo puro até a literatura, para as efusões de blogueiros-poetas, que despertaram a crítica editorial. O que chamamos hoje de “romance” ou “jornalismo” é o que sobreviveu a uma quantidade enorme de escritores amadores, obssessivos, loucos e gente de quem ninguém se lembra. Enfim, foi algo necessário, porque envolvia o movimento social de um instrumento (a configuração gráfica da palavra), que há séculos havia sido reservado para a elite. É o que deve ocorrer com esse tipo de produção atualmente, mas em cinquenta anos, quando analisado por especialistas, é que será compreendido.
Quando a senhora diz que muitos políticos não entendem a rede porque a rede não foi criada para o discurso político em termos modernos, lista a subjetividade e a intimidade como dois fatores condicionantes. É possível que o cenário se altere ou a comunicação por esse meio está condenada à falsa impressão de intimidade?
Vivemos na era da rotação subjetiva. Isso não significa simplesmente que se escreve mais do que nunca, mas que a narrativa em primeira pessoa é apresentada como prova da verdade do que é dito. É como se o Ocidente tivesse esquecido Freud e Nietzsche e vivesse seu último teste da verdade. É difícil separar isso da privacidade. Cada vez mais a privacidade das pessoas parece mais interessante do que suas vidas públicas. Finalmente, todos têm privacidade, mas nem todos têm posições sobre questões complexas e nem sempre as ideias são expostas com a mesma facilidade com que expomos os nossos sentimentos. Desse ponto de vista, a privacidade é anti-hierárquica. A alegação da privacidade é, em última instância, a vingança antielitista e antipopulista.
A campanha de Barack Obama em 2008 se tornou uma espécie de modelo do uso da rede por políticos. A internet, para esses fins, é eficaz ou o que houve nesse caso pode ser explicado por fatores alheios à rede?
Em primeiro lugar, é preciso frisar que os americanos estão muito mais familiarizados com a doação de dinheiro. Essas ações se tornam ainda mais estranhas e surpreendentes para alguém da América Latina que as testemunha in loco, nos EUA. Estações de rádio públicas fazem campanhas financiadas por contribuições anuais dos seus ouvintes, as celebridades estão sempre relacionadas a uma causa social comum, todas as programações de teatro têm longas listas de doadores que cimentam a sua reputação e o seu compromisso com a comunidade. Bill Gates é o exemplo mais espetacular desse costume, mas não o mais excepcional. Por outro lado, há uma legislação fiscal que permite a dedução de quase todas as doações em impostos pessoais e empresariais. Existe uma cultura de séculos que explica o empenho em empreendimentos coletivos. Nesse sentido, as campanhas políticas não são contra esse tipo comum de intervenção na vida da comunidade. Outro ponto a considerar é que os americanos estão muito mais acostumados a comprar, vender, pagar, sacar dinheiro, enviar ou recebê-lo através da internet do que nós, latino-americanos. Em terceiro lugar, o acesso a internet nos EUA é muito maior do que em qualquer outro país desse hemisfério. Dessa forma, a campanha eleitoral de Obama não teve de inventar ou impor um estilo, antes disso, conseguiu recursos dramaticamente ao reforçar as doações com o desafio extraordinário que significava carregar um político negro, jovem e liberal [no sentido americano] até a presidência. A campanha se mostrou, portanto, convincente. Ainda mais, por [em se tratando da disputa interna do Partido Democrata], utilizar positivamente dois termos: uma mulher e um negro. A escolha em Obama não significou uma salvação do perigo ou do retrocesso, apenas uma aposta no melhor dos dois.
A senhora também desenvolve uma profícua atividade de crítica literária. Nos últimos dez anos, também no Brasil, várias discussões foram travadas sobre o papel da internet para o surgimento de novos escritores. Até que ponto a senhora acha que isso aconteceu de fato?
Nenhum dos novos escritores que eu li (e leio muito, pois trato disso em uma coluna sobre novos escritores no jornal Perfil), é oriundo dessas novas tecnologias. Se chegam de um lugar-comum, é a universidade, a escola de letras, um ambiente hiperliterário. Essa formação eu consigo identificar na segurança dos novos escritores que, se pode gostar ou não, mas se equivocam pouco em termos técnicos. Talvez eu esteja perdendo o que é produzido na internet, mas não é algo sobre o qual eu tenha ouvido falar. Fragmentos de textos de todo o mundo estão na web, mas não significa que eles foram produzidos lá. Na internet, se propaga a história da cultura em fragmentos e recortes: uma biblioteca sem índice, ou melhor, adequada à força da tecnologia.
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