O Rio não para de chegar

Correspondência

04.05.11

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Armandíssimo,

Engraçado te escrever uma carta dias depois de ter conversado tanto tanto com você e Cri, aí no Rio, do nosso jeito: na copa enquanto o molho apurava no fogão, a portas fechadas, depois passando para a sala de jantar, e a de “visitas” – estranho a permanência desse nome no espaço mais generoso da casa, mas não aceito chamá-lo de living – e ainda na calçada à espera do táxi,  perto do cocô do cachorro, até os 47 minutos do segundo tempo.

E agora, por escrito, o que mais? Sua última carta é ótima e me faz suspirar pela promessa da poesia escrita na resignação. Quem sabe, se eu conseguisse escrever assim, ficaria mais zen – bem que meus filhos gostariam.

Filhos: vou de trás pra frente, desenrolando o novelo da conversa do sábado. Ninguém nos confronta mais com o que nós somos do que os filhos. Corrijo: ninguém nos confronta mais com o pior do que somos do que os filhos. Nem o cônjuge, para quem tem um, que palavra horrível para designar o amor da vida das pessoas. Nem os críticos, para aqueles que escrevem, filmam, compõem etc. Nem o público, para quem é da vida pública. Ninguém melhor ou pior do que os filhos para nos colocarem na berlinda, mostrarem a nossa cara num espelho mesquinho, egoísta, brutal, distraído, banal.

Ponto. É só um desabafo mais ou menos atualizado.

Agora, o Rio. Gosto tanto do Rio que tenho medo de abraçar a cidade de vez, virar carioca e me decepcionar.  Um namorado que veio do Rio para viver em São Paulo e você sabe quem é, uma vez me disse diante da janela do Novo Mundo aberta para a baía de Guanabara: “É como se eu fosse o ex-marido da Catherine Deneuve. Sei que ela é linda, desejável, amável, uma unanimidade internacional. Mas só eu conheço as histerias, os achaques, as crises e a chatice dela. Não volto, não. Prefiro sentir saudades de longe”. Outro comentário dele que muito me fez pensar foi quando eu disse que deveria ser maravilhoso morar no Rio de Janeiro, e ele me respondeu de pronto: “Até o dia em que você precisar de um encanador”. Poderia ser marceneiro, pedreiro, mecânico, sapateiro. Entendi na hora. Talvez só meus amigos muito ricos, que pagam caro por profissionais de ponta, não assinassem em baixo dessa observação amargurada.

Também vale indagar o que diriam os encanadores, mecânicos, pedreiros, sapateiros e marceneiros a respeito do profissionalismo, na outra ponta da corda, dos doutores “sangue bom” e das madames cariocas.

Então: às vezes penso que o melhor do Rio é, sem tirar nem pôr, idêntico ao pior dele. O pré-capitalismo, por exemplo, em que a cidade ainda se mantém (com exceção da Barra, mas a Barra pra mim é outro município). O pré-capitalismo que conserva dentro do Rio de agora o século XIX, os anos 1930, 1960, ou seja, o tal “caldeirão de mitos”, que é como meu amigo Rubens Machado nomeou o significado do Rio para o cinema do Bressane. O pré-capitalismo que faz dos pequenos bairros cariocas recantos caseiros, provincianos, dominados pelo povo miúdo que ocupa as ruas a seu gosto e vive como pode e como quer. No entanto são pedaços da cidade que certamente valem milhões. Ai que medo do Eike Batista: os melhores sonhos modernizantes dele se parecem com meus pesadelos. O pré-capitalismo que é o pior defeito do Rio das relações de trabalho atrasadas, dos favores políticos, das “500 famílias” como você diz – e que também faz o encanto da cidade. Vai do traçado urbano, muito pedestre perto do centro, que permite a permanência de quarteirões tão inacreditáveis que nem vou mencionar por escrito para não dar ideias a algum empreiteiro; e que atinge também a sociabilidade descompromissada, passante, entre desconhecidos que não fazem cerimônia com os outros, tanto na simpatia quanto no mau humor. O Rio me dá saudades do Brasil. Quando vou a sua casa e passo pelo lindo prédio da UFRJ que traz na fachada “Universidade do Brasil”, eu penso, sim: cheguei no Brasil. Vim de São Paulo e cheguei no Brasil.

Sentia o mesmo ao descer no Santos Dumont, da escadinha do avião para a pista, e sentia o bafo do Rio, o cheiro sexual da maresia: cheguei no Brasil. Há uns cinco anos escrevi um poema, outro da “Suíte do Rio”, prevendo o fim desse jeito de chegar na cidade que me deixava comovida feito o diabo.

1. Santos Dumont

Mas vai chegar o dia em que a nave atracará num finger

e em vez da maresia o vento mastigado

em vez do bafo a assepsia.

 

Dia de a fibra arrefecer

a pisada do viajante

o abraço do sol

 

e um intervalo morto

adiar a refrega

entre a cidade

e o corpo.

 

Chegou o dia, mais depressa do que eu esperava. Desço do avião que pousa na ponta da baía e entro no tubo de borracha e ar condicionado. O impacto da cidade demora uns minutos mais.

Mas como assim? Estamos condenados a amar sempre o que já foi? Amamos o que já foi porque é o que conhecemos. Mas reformulo. Não tenho saudades do Brasil do atraso, da miséria, da desigualdade e tudo o mais que conheço tão bem. Nem do Rio do esgoto a céu aberto, adolescentes de fuzil na mão, elite mal-educada, carros estacionados nas calçadas.

Tenho saudades do sonho de um Rio de Janeiro que a transformação daquele outro prometia. Tenho saudades do Brasil sonhado por muitos de nós antes do golpe militar, por exemplo. Mas a transformação não virá como nos nossos sonhos. Virá com a histeria da Copa, a especulação imobiliária, a multiplicação dos bilionários, dos grandes empreendimentos, e daquilo que você muito bem observou, os carros brutais vestidos de luto com motoristas-fantasma que passam por cima do mundo sem olhar pra trás.

O Rio que eu adoro não é o clichê turístico da festa: parece mais uma doce melancolia. Onde a cidade é mais pobre, ninguém perde uma oportunidade de ser feliz. Chamo essa parte de Rio ruim. São ruas apertadas e sujas, perto do centro, do Catete, do Cosme Velho (adoro esse nome). Ruas cheias de gente ocupada com as atividades mais improváveis, instalada nos cantos mais absurdos para montar pequenas bancas a oferecer servicinhos e produtos modestíssimos, conversando em voz alta como se estivessem em casa, bebendo cerveja na calçada suja, vivendo do mínimo do mínimo. Economia de subsistência com uma vontade de alegria invencível.

Por este Rio ruim eu ando a esmo, dobro uma esquina, sou tomada por um cheiro velho ou pela mudança da luz filtrada pela copa de uma amendoeira e me espanto, com o quê? Vou roubar um verso que você escreveu para a Cri no Cabeça de homem,  acho, para expressar esse espanto: “você não para de chegar”. É o que eu sinto, a cada vez: o Rio não para de chegar.

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