Entre a neve e o fogo

No cinema

03.03.17

Manchester-by-the-sea é um vilarejo litorâneo de Massachusetts, na Nova Inglaterra, nordeste dos Estados Unidos. Talvez não seja exagero dizer que Manchester à beira-mar, o filme de Kenneth Lonergan, seja a tradução cinematográfica da atmosfera melancólica desse lugar no inverno, com a neve caindo sobre as casas, as árvores, os barcos, o mar.

Mas no centro dessa narrativa elegíaca há a tragédia: o fogo explode em meio à neve, destruindo uma casa e uma família. O mérito maior da construção narrativa de Lonergan, que ganhou o Oscar de roteiro original, é o de equilibrar, em seus avanços e recuos temporais, esses dois polos, o da tragédia e o da elegia. Sob a neve que cai e se acumula devagar, as chamas às vezes afloram à superfície de modo inesperado e violento, como um vulcão que se julgava extinto.

Há uma analogia entre essa paisagem física e dramática e o comportamento do protagonista, o impenetrável Lee Chandler (Casey Affleck), que abandonou Manchester para trabalhar de zelador e faz-tudo em Boston e agora está de volta para enterrar o irmão mais velho (Kyle Chandler) e cuidar do sobrinho adolescente, Patrick (Lucas Hedges). Com um acontecimento traumático em seu passado (que só se revelará na segunda metade do filme), Lee oscila entre a apatia e a explosão bruta. Parece só ser capaz de expressar suas emoções com socos e pontapés.

Culpa e redenção

Há, na verdade, os retratos entrelaçados de dois personagens, Lee e o sobrinho, que acaba de perder o pai, mas parece (só parece) não estar abalado. Segue tocando na sua banda de rock, namorando duas garotas ao mesmo tempo, jogando hóquei e basquete no time do colégio. No contexto de secura e indiferença aparentes, cada contato físico entre esses dois indivíduos unidos pela perda assume uma intensidade tremenda.

Mas Manchester à beira-mar permite outra leitura, de ênfase mais moral do que psicológica ou estética. Nela, o mal estaria associado ao álcool, às drogas, ao comportamento desregrado. Visto desse ângulo, o filme seria uma parábola sobre culpa e redenção. Não por acaso, os Chandlers (literalmente, fabricantes de velas) são uma família católica, provavelmente de origem irlandesa. Ainda que haja uma breve sátira da carolice, encarnada na figura do novo marido (Matthew Broderick) da mãe de Patrick, um sentido religioso parece perpassar todo o filme.

Com tudo isso (tragédia, elegia, parábola), Manchester não deixa de ser um melodrama, no sentido etimológico da palavra (drama + música), que chega a convocar o intenso e surrado Adagio de Albinoni para sublinhar seu momento mais pungente. Mas é um melodrama que, em muitos aspectos, transcende o gênero e ajuda a renová-lo. No atual estágio do cinema hollywoodiano, não é pouca coisa.

A grande muralha

É curioso o destino de um cineasta como o chinês Zhang Yimou, que despontou há trinta anos e conquistou o mundo com filmes de encanto pitoresco e apuro visual como Sorgo vermelho, Lanternas vermelhas, Operação Xangai e O clã das adagas voadoras. Ganhou prêmios nos principais festivais, foi indicado várias vezes ao Oscar e consagrado por boa parte da crítica.

Com A grande muralha, superprodução internacional que recria uma das lendas em torno da história da muralha da China, ele aposta francamente no desejo de criar um blockbuster, sobretudo entre o público jovem. Tudo é inflado, espetaculoso e pueril nessa aventura histórica em que dois mercenários europeus (Matt Damon e Pedro Pascal) buscam o “pó negro” chinês (a pólvora) e acabam se deparando com a muralha, justamente num momento em que esta é fustigada por monstros ferozes.

Criaturas bizarras, paisagens sintetizadas eletronicamente, batalhas filmadas como videogames, tudo remete a um pastiche de Senhor dos anéis e outras fantasias juvenis cujo padrão estético transcende um gênero específico, abarcando desde épicos bíblicos (o Noé de Darren Aronofsky) à ficção científica (os novos Star wars), passando pela aventura mística (O último mestre do ar, de Shyamalan). Nessa mixórdia, até um grande ator como Willem Dafoe parece perdido.

Fica a dúvida: A grande muralha atesta a decadência de um bom cineasta ou ilumina retrospectivamente a obra de Yimou como uma contínua tentativa de encantar os olhos ocidentais com exotismos histórico-culturais asiáticos? Talvez as duas coisas não sejam excludentes.

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